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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

UMA VIAGEM

Mais das minhas leituras:

Tem dia q só na companhia dos bons consigo animar-me. 
Peguei, na escrivaninha do meu quarto, o exemplar maltratado do Solo de Clarineta, segundo volume, escrito pelo Érico Veríssimo. Nele, o autor conta sobre algumas viagens. É autobiográfico. Comecei a relê-lo, antes do Natal. Parei na parte que o Érico descreve as sensações sentidas quando entrou, pela primeira vez, no Mosteiro de Alcobaça. Consultei o Google e vi as imagens. Então, reli as páginas 111/113 da publicação da Editora Globo, de Porto Alegre, 1976.
E olhei, de novo, as imagens.
Não gosto de viajar, fisicamente. Viagens assim, na companhia de quem sabe sentir e expressar o que sente, vendo fotos (a internet disponibiliza tantas!) e filme (Mosteiro de Alcobaça - Leiria - Portugal - you tube, ao som da Ave Maria (Gratia Plena), de Schubert) e aprendendo sobre a história do lugar visitado - definitivamente - fazem meu gênero.
Sou fã do Érico. Não passo uma semana sem reler trechos de livros dele. Meu predileto é O Tempo e o Vento, claro! A partir de Olhai os lírios do campo, todos me encantam. Em destaque: Saga; O Senhor Embaixador; Incidente em Antares; Solo de Clarineta I e II... Em Solo de Clarineta I, o autor conta sobre seu processo de construção dos seus personagens, a partir das figuras que conheceu, ao longo da vida. Tem muito da família nas caracterizações.
Da página 111 até 113 temos:

"[...] Chegamos a Alcobaça e nosso carro se detém à frente da entrada principal da igreja do famoso mosteiro. Não posso esconder meu desapontamento. Não vejo nessa fachada sua esperada beleza, sua tão apregoada grandiosidade. Bom, não negarei que é bonita. Construída de pedra calcária, dum creme dourado pelo sol - esse templo, considerado um dos maiores e mais importantes de todo Portugal, é um exemplo visível e palpável da teoria do devir aplicada aos monumentos arquitetônicos. Apesar de ter sido construído no período de transição do românico para o gótico, de gótico só vejo nele agora a porta ogival e, um pouco acima dela, uma rosácea. A parte superior da fachada - isso salta logo à vista - tem muito de manuelino e de barroco.

Quando, porém, entramos no templo este filho de D. Bega experimentou a sua mais profunda sensação de beleza desde que sentara pés em terras de Portugal. Foi uma espécie de "susto estético", se é que me faço entender... Já da porta divisei três longas naves ogivais de pedra cinzenta, as três da mesma altura, e em puro estilo gótico primitivo: o mais simples, harmoniosos e austero conjunto arquitetônico religioso que até então eu encontrara, digamos assim, face a face. O interior do santuário me causou um impacto tão forte que me cortou por um átimo a respiração. Foi como se eu tivesse sido arrebatado para a quarta dimensão, como já me acontecera algumas vezes na vida sob o sortilégio de certas peças de música. Nunca experimentara em ambiente algum tamanha sensação de recolhimento, silêncio e paz. Aquele conjunto de naves (que importa a cronologia?) bem podia ser a versão em pedra duma tocata de J. S. Bach para órgão, grandiosa apesar  - ou por causa da singeleza - da singeleza de sua linha melódica, tão olimpicamente serena na sua intemporalidade e no entanto tão sugestiva dos dramas do homem e dos mistérios da vida e da morte.
Fazia frio dentro do templo, mas não devia ser só essa a causa do arrepio que me percorria o corpo abrigado por grosso sobretudo. Perdi de vista os companheiros. Ouvia apenas o murmúrio de suas vozes. Continuei a contemplar, extasiado, a nave central - despida de ornamentos tanto na abóbada como nas altas colunas - e sutilmente me veio a revelação de que sua perspectiva não fugia apenas no espaço mas também no tempo e, não fosse o medo que tenho às palavras enormes, eu acrescentaria - na Eternidade. De súbito compreendi o misticismo, cheguei a ser eu próprio um místico, embora apenas por uma fração de segundo. Continuei a respirar um pouco ofegante, os olhos piscos e já meio úmidos, como à espera de que algo de sobrenatural estivesse prestes a acontecer. No fundo da nave central a luz da manhã entrava intensa por três janelas. Seriam os olhos fulgurantes de Deus que me contemplavam, querendo revelar-me um Mistério, algo capaz de mudar inteiramente minha vida interior?
Volto aos poucos ao mundo tridimensional e digo aos companheiros algumas palavras que me soam estúpidas, inanes. E os cinco nos encaminhamos para a ábside, lá no fundo. Visitamos depois o Claustro do Silêncio, mandado construir por D. Dinis. E estes dois sarcófagos de pedra tão delicadamente esculpidos que parecem obras de ourivesaria? Num deles jazem ps restos de D. Inês de Castro, a que pois de morta foi rainha. Sobre a pesada tampa vejo estendida sua figura talhada em pedra, em tamanho maior que o natural. Seis anjos de asas abertas contemplam-lhe o rosto com uma expressão de terna tristeza. Este sarcófago foi desenhado e esculpido sob a fiscalização pessoal de D. Pedro I, seu desvairado amante, cujos despojos aqui se encontram também, num sarcófago idêntico ao de sua bem-amada. Assim -imaginava ele e acredita até hoje a fantasia popular - no dia em que os arcanjos fizerem soar suas trombetas, anunciando o Juízo Final, ao se erguerem de suas tumbas Inês e Pedro se encontrarão frente a frente, cairão um nos braços do outro e, de mãos dadas, comparecerão à presença de Deus, por quem serão julgados e naturalmente absolvidos, permanecendo depois juntos na Eternidade. (Já notaram como essa palavra anda me perseguindo?)
Souza Pinto consulta seu relógio-pulseira e convida-nos a visitar o resto do mosteiro. Antes, porém, de deixar o templo torno a caminhar por entre suas naves, pensando assim: "Talvez eu esteja vendo estas pedras pela última vez na minha vida. Sei que vou encontrar na Espanha, na França e na Itália catedrais românicas, góticas e barrocas mais grandiosas do que esta igreja monacal. Mas prometo, ó santuário de Alcobaça, que jamais te esquecerei. E se um dia eu tentar descrever em palavras o que senti hoje dentro de ti, perdoa à nossa língua pelas suas limitações e principalmente a este escriba por não saber manejá-la bem. E adeus!"" (VERÍSSIMO, 1976, p. 111 a 113).

Esse livro póstumo foi publicado graças a Flávio Loureiro Chaves, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em acordo com a família do escritor, falecido em novembro de 1975. Coube ao Flávio por ele ser um "[...] conhecedor abalizado da obra de Érico Veríssimo e do seu método narrativo." (Nota dos Editores)

Os capítulos I, II, III e IV - correspondendo a 251 páginas já estavam inclusive impressos. Faltava apenas a conclusão.

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