O TRONO
Cléia Gerin
A casa da Nona Rosa
A menina cresceu
se aventurando pelas ruas da sua cidade natal, visitando parentes e pessoas
distribuídas pelos cantos todos daquela pequena aldeia que misturava, num mesmo
bem querer, conhecidos, amigos e familiares.
A casa
predileta, quando ela começou a fazer o percurso na bicicleta que herdou do
irmão mais velho, era a da Nona Rosa.
Era lugar
acolhedor, feita de tijolinho maciço, nas paredes e no piso que era alvo e
limpo, porque era lavado com soda cáustica, tijolo por tijolo, duas vezes na
semana. A tarefa cabia a algumas das netas mais velhas, que se revezavam na
limpeza e no cuidado com os velhinhos que criaram nove filhos e moravam
sozinhos.
Na entrada, um
pequeno hall, com acesso, à esquerda, para o quarto do casal e, em linha reta,
para uma sala comprida, onde se viam as portas de mais dois quartos, também à
esquerda. Num dos cantos, o pote de água. Detalhe: feito de barro e queimado em
forno exageradamente quente, como era comum naquele tempo, era o que mais
atraía a menina àquela casa!
Ela chegava,
pedia a bênção, toda suada pelo esforço da subida e do exercício do pedal,
dirigia-se ao pote e era servida, pela cuidadosa velhinha. Zelosa pela higiene
da água nele contida, a Nona mantinha um prato de alumínio sobre esse pote tão
limpinho, usando o prato como tampa e bandeja. No prato, descansavam dois
copos, também de alumínio: um para retirar a água de beber e outro que podia
ser levado à boca. À distância, a lembrança nítida se funde a uma mais recente:
a menina, agora avó, reviu o pote, em uma cidade de Goiás, bem cuidado, na casa
de uma neta da Nona. Terá sido a labuta de lavar a casa da Nona,
sistematicamente, por anos a fio, com soda cáustica, o critério para que a
relíquia fosse destinada, como herança, exatamente àquela específica neta?
Uns passos mais
e aparecia a cozinha, com seu fogão de lenha; uma mesa de dois lugares, para as
refeições; e uma pia pequena com torneira. Uma das portas levava à despensa.
Outra porta dava acesso ao quintal, e, lá fora, do lado direito, encostado à
parede da cozinha, ficava um jirau com uma bacia esmaltada, usada para lavar
roupas e vasilhas maiores e mais difíceis. Destacava-se, bem perto, a cisterna.
Do lado
esquerdo, ficava a casinha das primeiras necessidades...
Afastada,
estrategicamente, a casinha de madeira tinha, dentro dela, bem no meio do
cômodo quadradinho, um trono, também de madeira: um caixote grande, sem
encosto, com um buraco, de utilidade óbvia, em cima dele, quase no meio. Sempre
limpos e revestidos de jornal, tanto o trono, quanto o chão, ao redor dele.
Característica estranha, considerando que poucos desperdiçavam jornais, nos
idos de 1957. Esse trono-caixote tinha a altura apropriada para uma pessoa
adulta sentar-se e fazer suas necessidades, confortavelmente.
A Nona morava em
uma casa de esquina, caiada de branco, com a porta da sala voltada para a rua
Carlos Fernandes. Um jardinzinho de flores singelas ficava entre a porta da
frente e o murinho baixo. Murinho dividido em dois, com passagem, no meio.
Do lado direito,
entre a casa e a rua transversal, ficava um pedaço do quintal, cercado de muro
baixo, que permitia aos passantes divisarem uma hortinha bem cuidada, um pé de
romã e duas janelas, sempre abertas: uma na sala e outra na cozinha.
A menina
costumava chegar pela lateral da casa, ainda na rua Campos Sales, para entrar
pelo quintal, onde deixava sua bicicleta.
Olhando por cima
do muro lateral, quando as janelas se encontravam abertas, era possível ver a
Nona, aquela senhora séria, alta e exigente, sempre lidando; ora cuidando dos
afazeres domésticos, ora fazendo rendinhas de crochê; mimos que ela distribuía
nos aniversários das netas e bisnetas. Eram quatro metros de rendinha, para
cada uma, a serem utilizadas como enfeite nas calcinhas que, naquele tempo,
eram feitas de saco de algodão alvejado.
Cercando e
protegendo o quintal do fundo, o muro continuava paralelo àquela rua
transversal, a Campos Sales, a que dá acesso à entrada do Campo de Futebol, na
pequena Ipuã, que era, então, uma cidadezinha de poucos habitantes e poucas
casas.
Quando o pé de
romã estava carregado, era feita a previsão do dia propício pra buscar a fruta
madura, antecipadamente destinada, que a Nona determinava ser de cada
merecedor. Na véspera do dia marcado, chegava o recado: "A Nona pediu pra
você ir lá amanhã, buscar sua romã".
A Nona
A Nona e o Nono
se conheceram jovens, cheios de sonhos, casaram-se, viveram seus percalços,
criaram seus filhos, e viram as gerações futuras chegar...
Comportaram-se
de acordo com o que o destino teceu, nas urdiduras do tempo, até serem
sepultados, cada um a seu tempo, no cemitério de Ipuã, onde esparramaram suas
raízes.
A menina sabia
bem que a Nona era muito brava; ouvia muitos casos sobre o jeito sério como
essa senhora entendia a vida. Como as pessoas diziam, naquele tempo, o Nono
cortava um doze com ela...
O Cine Theatro
Ipuã tinha sido construído e o povo se empolgava com a novidade. O Nono a
convidou para irem ver uma fita. Qual!, disse a Nona, mas não vou nunca gastar
dinheiro por nada! Ele se calou. Fazer o quê? Sabia que não a convenceria.
Ainda mais que ela andava chateada, porque queria colocar chapa e o dinheiro
andava curto.
E teve um dia
que escureceu e o Nono demorou muito pra voltar pra casa. Fato incomum...
Cidade pequena, todos sabiam da vida de todos, mas ninguém tinha visto o Nono.
Eram tantas casas pra visitar; de filhos, de netos já casados; havia de ter
ficado pra jantar em alguma casa; ele estava por ali mesmo, diziam...
Naquele tempo,
era incomum carregar dinheiro, ou carteira. As pessoas andavam com uns
trocados, no bolso, para o pão, umas balinhas, porque tudo era comprado no
armazém e era marcado na caderneta. No dia de pagar, pegava-se o dinheiro que
ficava guardado em caixa de papelão, dentro do guarda-roupa, e quitava-se a
dívida. Assim, era fácil pra Nona saber a quantia que o Nono carregava, no
bolso. Quando o Nono chegou e não deu explicações, resmungando que nem tinha
saído dali de perto, ela ficou enfurecida, mas calou-se. Esperou que ele dormisse
e, sem ele perceber, foi direto ao bolso e contou o dinheiro, comprovando que
faltavam alguns réis. No dia seguinte, perguntou, então, para um dos netos:
- Quanto custa
pra ir naquela casa de pouca-vergonha, a cinema?
E a resposta
foi, justamente, o equivalente ao que faltava no bolso do Nono; o suficiente
para ela ver comprovada a certeza do descaramento dele!
Constrangido
pelo mau exemplo, depois de ver a Nona alardear, aos quatro ventos e em ritmo
de tempestade, sua conduta de desrespeito, o Nono se arrependeu: pra tanta
briga e cara feia, tão pouco proveito!
A Nona já tinha
passado muita coisa nesta vida! Até filha casada e mãe de dois filhos ela viu
sofrer de câncer, sem recursos, sem remédio, sem assistência, até morrer.
Quando os pais
da Nona decidiram mudar para o Brasil, escolheram o Rio Grande do Sul. Foi onde
ela nasceu. Mas a mãe não se adaptou e voltaram para a Itália. Vieram em quatro
e, ao retornar, eram cinco: o casal e três mocinhas. Lá na Itália, a vida
continuava dura, e a mãe da Nona trabalhava na rua, vendendo carvão, empurrando
um carrinho, pra ajudar no sustento de casa. Num dia muito triste, a mãe sofreu
um acidente e faleceu. O pai das três mocinhas voltou, então, para o Brasil e,
desta última e definitiva vez, construiu seu futuro no estado de São Paulo, em
Batatais. As outras duas irmãs da Nona viveram e morreram nessa cidade.
O aniversário e a discórdia
Gente é bicho
que precisa passar por muito aprendizado.
Por mais que o
vivente aprende, mais e mais é preciso botar tento no que ele faz, para que a
sequência não seja eterna tentativa de superação da própria pequenez.
O ser humano
tem, dentro de si, algumas certezas e, quando ele quer, ele aprende a lidar com
elas.
Uma delas é que
a pequenez de um ato seu pode ser marca eterna na vida de outras pessoas.
Outra, é que o
prazo de validade vai-se extinguindo, em direção à morte; peso que se carrega
no peito e na alma, a partir da chegada do entendimento do que é a vida.
Neste meio
tempo, ele precisa apreender e treinar a tolerância.
Só o
entendimento dá margem a um coração aberto ao perdão.
Na lembrança
mais remota da menina, numa reunião comemorativa do aniversário do Nono, ela
sofreu a primeira injustiça, marcadamente traumatizante, na sua vidinha de
apenas seis aninhos de falta de experiência.
O Nono morreu
logo depois, um mês e poucos dias depois, e a menina dedicou um bom período e
muito treinamento para conseguir perdoá-lo...
Aconteceu que,
no aniversário do Nono, no ano de 1957, os pais da menina foram à casa da esquina,
cumprimentá-lo pela data. Passava um pouco dos 80 anos, esse senhor empertigado
e muito simpático, que ainda jogava bocha, pelo menos uma vez por semana.
A Nona abriu a
porta da sala, sorrindo, e fez o mesmo comentário de sempre sobre as flores de
cor branca e lilás; que ela cultivava e enfeitavam o jardinzinho:
O Nono era um
italianão bravo e esta senhora que compartilhava sua história entrelaçada à
dele respeitava seus rompantes. Toda a família respeitava. Ele era figura
querida e bom contador de casos. Antes de envelhecer, era um mascate: ganhou a
vida vendendo produtos de armazém, nas fazendas das redondezas.
O aniversário
dele, naquele ano de 57, caiu num dia de semana. Durante todo o dia, muitos
passaram pela casa e cumprimentaram aquele senhor alto, de vozeirão e sotaque
marcantes, e cabeça branca.
Passado tanto
tempo, a menina não se lembra de detalhes sobre pessoas, assuntos, comida...
Gente grande conversava, criança brincava, fazendo algazarra e correndo, fazendo
a volta, pela sala e quintal, numa gritaria alegre, empolgada e sem fim!
Adiantava-se a
hora, muito além do que os velhos costumavam esperar para recolherem-se,
encerrando o dia.
A meninada
mantinha-se com a corda toda; todas as crianças numa farra interminável, numa energia
enervante, dando voltas e mais voltas...
E os adultos
tentando conversar.
E nem durava um
minuto pra volta ser dada e, da porta da frente da casa, surgiam os gritos que
cutucavam os nervos daqueles adultos que se encontravam naquela sala onde, normalmente,
só ficavam cadeiras dispostas nas paredes laterais.
A menina era uma
das encapetadas criaturinhas: magrelinha, estabanada, de voz estridente...
Destacava-se das outras crianças, naquela correria incessante, da sala para a
cozinha, para o quintal, aparecendo, novamente, com o coração quase saindo pela
boca, suando.
De repente, alguém
a pegou pelo braço, com força, num tranco só, sacudindo-a, fazendo-a sentir-se
um saco de ossos...
De olhos
arregalados; coração descompassado; a menina, paralisada, tremia...
Bem alto, ouviu-se
uma voz, cuspindo irritação:
- Dio mio! Ma
che! parece que essa criança tem bicho carpinteiro no cu!
Seguiu-se um
silêncio sem cor e então, muito riso alto e palavras soltas, quando todos
entenderam que o Nono tinha perdido a paciência...
Aquela última palavra
concreta chocou a menina.
De suada e
vermelha, ela ficou amarela: de susto e medo!
Sentiu-se
envergonhada, quando olhou para o pai impotente que não a acudiu: era um tempo
de muito respeito aos mais velhos.
No coração da
menina entrou um ódio pecaminoso e devorador que pareceu incêndio devastando o
respeito que devotara, até ali, ao Nono...
A menina não o
viu mais.
Veio o período
de férias e o pai a levou pra Ribeirão Preto, para passar uma semana na casa da
tia Luísa e do tio Caetano, dois tios queridos que moravam na esquina do Bosque
daquela cidade.
Quando o pai a
buscou, no final dos dias maravilhosos de peripécias e carinho recebidos naquela
casa onde morava a alegria, o pai contou que o Nono tinha morrido, vítima de um
mal que parou o coração lá dele.
E que foi a Nona
quem o encontrou, lá, na casinha...
A Nona estranhou
tanta demora, foi até a casinha, e lá estava ele, sentadinho no trono:
- Parecia que
dormia, o poveretto!
Sítio Rosa Mística, 19 de outubro de
2013