Sofia, na solidão do quarto
frio, tem os olhos fixos na página do livro que relê pela nona vez.
Mais do que o foco
narrativo, o que a encanta e prende é o estilo do autor.
Com mais de sessenta anos,
já aposentada, ela é acometida de algumas mazelas, próprias da idade. Como
agora, que sente as mãos formigando e a sensação de segurar o livro se torna
muito incômoda. Deixa a cadeira de ler e aproxima-se da escrivaninha onde apoia
o livro. A mudança, a cadeira menos cômoda, a nova posição sem segurar o livro
com as mãos trazem novo alento.
Ao recomeçar a leitura,
mergulha no último trecho:
“(...) Tinha cansado de
esperar pelo homem que ficou, pelos homens que foram embora, pelos incontáveis
homens que erraram o caminho da sua casa, confundidos pela incerteza das
cartas. Na espera, sua pele tinha enrugado, seus seios tinham murchado e se
havia apagado a brasa do coração. (...)”
A página 65 do livro Cem Anos de Solidão, de
Gabriel Garcia Marques, na sua 23ª edição, foi devorada pela leitora que seguiu
viagem e só quando se lembrou de olhar a hora de relógio foi que entendeu que
precisava parar.
Deitada, de olhos abertos e
o coração descansando em plumas, vê seus pensamentos tomados pelos personagens
e acontecimentos lidos. Ler é entrar em estado de graça... Sabe que nunca vai
ser escritora, porque o livro que ela queria ter escrito era este que relê.
Sofia teve o privilégio de
nascer em uma casa com livros. Lembra-se que desde pequena ama livros. Desde
que aprendeu a ler, nunca deixou de terminar de ler um livro que lhe caiu nas
mãos...
O primeiro dia de aula não
foi fácil; numa sala de aula cheia de menino barulhento. E a professora de nome
Lurdinha a mandou ao quadro. E ela foi, toda envergonhada e sem saber nem pra
quê! Era pra pegar um giz e virar pro quadro e escrever... Qual! Foi um susto
só! Nem ouviu o que a professora a mandava fazer... Levou um beliscão bem na
bunda! E doído que só! Envergonhada, ela soltou o giz no chão e voltou pro seu
lugar, onde ficou de cabeça baixa e vermelha igual àquela pimenta dedo-de-moça
que a mãe tem plantada na horta lá dela.
E ela ficou com muita raiva.
Raiva de si mesma! Porque apesar de perceber que o menino se aproximava - já
tinha ouvido falar que aquele menino era o Juca, filho da professora, e que ele
tinha mania de beliscar as meninas – ela não se preveniu contra. E ele beliscou
bem na bunda! Que vergonha!
Mas a vergonha e a raiva
passaram.
Também pudera, a escola era
um lugar de encantamento tão grande; lugar de aprender tanta letra e tanto
número que acabava que a menina ficava até tonta, com a cabeça tão cheia de
sinais que se juntavam e que se afastavam e que se juntavam...
_ A gema do ovo faz mal à saúde.
_ O quê, menina, você falou alguma coisa?
Fia repetiu a frase que
estava escrita no jornal. E a mãe surtou!
_ Você está lendo? Meu Deus,
essa menina está lendo!
E a família toda soube que a
menina lia igual papagaio: ela repete e fala o que está escrito, mas nem sabe o
que lê...
Chegava visita e a menina
tinha de buscar um jornal pra mostrar que sabia ler.
Mas durou pouco o entusiasmo
da mãe.
É que a Fia parecia que
vivia com a cabeça nas nuvens. Escrevia no ar.
Descobrir as letras, juntar
as letras, escrever palavras... Fia não parava! E ela rodava, rodava, rodava e,
num repente, parava, do nada, e estendia o braço, e esticava o indicador e
escrevia, e escrevia e escrevia... no ar!
A lapada na mão veio com
vontade e xingamento da mãe. Cada frase parecia um soco:
_ Menina mais
escalafobética! Cheia de mania! Te arranco o couro! Palerma! Aprendeu a
escrever e fica com essa boca aberta! Esse braço no ar! Riscando o nada! Isso,
quando não fala sozinha! Só falta babar! Escalafobética!
Fia sentiu o ardume na mão,
da lapada! Correu pro quarto, pra chorar. Com muita raiva! Raiva de si mesma! Afinal,
a mãe já tinha corrigido, já tinha prometido surra, já tinha comentado com o
pai (e ela ouviu!) essa menina parece palerma; fica escrevendo no ar. Na
próxima vez, vou lascar a mão nela.
Com o pai a mãe falava
macio, contando, parecia que tinha dó dela; mesmo com raiva...
E ela parou? Parou. Depois
da lapada e do choro.
Quando não estava na escola,
Fia ficava no quintal. Com as árvores. Falava com as árvores. Abraçava, com
seus bracinhos magrinhos, o tronco do pé de manga sabina; a goiabeira; o pé de
caju. Sozinha, cantava música da igreja que aprendia na missa rezada em latim:
“Ave Maria, gratia plena, dominus tecum, Benedicta Tu...” Música do parque que
tinha chegado na cidade e tinha um alto-falante que tocava, na maior altura,
aquele som que cutucava os ossos e arrepiava os cabelinhos do braço: “Tornei-me
um ébrio e na bebida...” Subia nas árvores e ficava pendurada, de cabeça pra
baixo...
Alegria mesmo, quase tão
grande quanto a de aprender a ler, foi quando a professora contou que não podia
ficar estragando papel; que papel custava caro; que papel era feito de árvore!
Fia nem acreditou!
Já tinha sete anos essa
abraçadora de árvores que nem tinha conhecimento de coisa assim tão importante!
A página 65 do livro
predileto traz a narração das preliminares do sexo praticado por Aureliano e
Pilar Ternera. Satisfeita a ansiedade da carne, ela entende que ele a procurou,
mas, em seus devaneios de prazer, era uma outra quem ele tinha nos braços,
entranhada na sua alma e no seu gozo. Pilar pergunta e ele responde: Remedios!
E Pilar Ternera o ajuda a abrir as portas da felicidade. E Aureliano e Remedios se casam.
Sofia virou uma devoradora
de livros.
O autor de cada livro é a
Pilar Ternera que abre todas as portas.
Sofia costuma encostar, no
peito, o livro aberto, como se o abraçasse, sempre que alguma parte lida a faz
flutuar. Sempre que os acontecimentos todos – somatizados - são sintetizados
num momento de estupor que a paralisa...
O livro da vez e ela, em
simbiose, voltados para o sentir.
Depois que aprendeu a morar
nos livros, Sofia ainda estudava, ainda sonhava, namorou, viu filmes, viu TV,
casou-se, teve filhos, teve netos, envelheceu...
Não foi de pedrinhas de
brilhantes o chão que ela pisou.
Foi de devaneios e prazeres
o chão que ela desenhou, sempre que sobrava tempo e ela mergulhava nos
brilhantes dos livros e dos personagens todos que moram nas histórias e
misturam a realidade e a ficção.
As pessoas se perdem na
caminhada.
Mas os livros, as
personagens e peripécias não.
Ao acordar, na manhã daquele
novo dia, o livro da releitura a olhava da escrivaninha.
Ela se lembrou do dia que
esperava a filha voltar de uma viagem, no aeroporto de Brasília, e viu uma moça
sentadinha, encolhidinha de frio – chovia muito e era verão! - lendo o Cem Anos
do Garcia Marques. Sofia se aproximou e perguntou se era a primeira vez que ela
o lia. Com olhinhos de encantamento, a moça que esperava o voo para Palmas, a
capital do Tocantins, disse que sim, que estava adorando, que não conseguia
parar de ler... Sofia contou que já o tinha lido muitas vezes e que morria de
inveja de quem o lia pela primeira vez... A mocinha se despediu dizendo que
tinha certeza que também o leria muitas vezes.
Sofia deixou a cama,
carregando um sorriso, e foi lidar com as horas do dia que a mantinham no chão,
com a certeza que o livro a esperaria e abriria o caminho das nuvens quando ela
precisasse voar...
Sítio
Rosa Mística, janeiro de 2014