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quarta-feira, 26 de março de 2014

OUTRO CONTO: ONDE MORA O AMOR


Sofia, na solidão do quarto frio, tem os olhos fixos na página do livro que relê pela nona vez.
Mais do que o foco narrativo, o que a encanta e prende é o estilo do autor.
Com mais de sessenta anos, já aposentada, ela é acometida de algumas mazelas, próprias da idade. Como agora, que sente as mãos formigando e a sensação de segurar o livro se torna muito incômoda. Deixa a cadeira de ler e aproxima-se da escrivaninha onde apoia o livro. A mudança, a cadeira menos cômoda, a nova posição sem segurar o livro com as mãos trazem novo alento.
Ao recomeçar a leitura, mergulha no último trecho:
“(...) Tinha cansado de esperar pelo homem que ficou, pelos homens que foram embora, pelos incontáveis homens que erraram o caminho da sua casa, confundidos pela incerteza das cartas. Na espera, sua pele tinha enrugado, seus seios tinham murchado e se havia apagado a brasa do coração. (...)”
 A página 65 do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, na sua 23ª edição, foi devorada pela leitora que seguiu viagem e só quando se lembrou de olhar a hora de relógio foi que entendeu que precisava parar.
Deitada, de olhos abertos e o coração descansando em plumas, vê seus pensamentos tomados pelos personagens e acontecimentos lidos. Ler é entrar em estado de graça... Sabe que nunca vai ser escritora, porque o livro que ela queria ter escrito era este que relê.
Sofia teve o privilégio de nascer em uma casa com livros. Lembra-se que desde pequena ama livros. Desde que aprendeu a ler, nunca deixou de terminar de ler um livro que lhe caiu nas mãos...
O primeiro dia de aula não foi fácil; numa sala de aula cheia de menino barulhento. E a professora de nome Lurdinha a mandou ao quadro. E ela foi, toda envergonhada e sem saber nem pra quê! Era pra pegar um giz e virar pro quadro e escrever... Qual! Foi um susto só! Nem ouviu o que a professora a mandava fazer... Levou um beliscão bem na bunda! E doído que só! Envergonhada, ela soltou o giz no chão e voltou pro seu lugar, onde ficou de cabeça baixa e vermelha igual àquela pimenta dedo-de-moça que a mãe tem plantada na horta lá dela.
E ela ficou com muita raiva. Raiva de si mesma! Porque apesar de perceber que o menino se aproximava - já tinha ouvido falar que aquele menino era o Juca, filho da professora, e que ele tinha mania de beliscar as meninas – ela não se preveniu contra. E ele beliscou bem na bunda! Que vergonha!
Mas a vergonha e a raiva passaram.
Também pudera, a escola era um lugar de encantamento tão grande; lugar de aprender tanta letra e tanto número que acabava que a menina ficava até tonta, com a cabeça tão cheia de sinais que se juntavam e que se afastavam e que se juntavam...
_  A gema do ovo faz mal à saúde.
_  O quê, menina, você falou alguma coisa?
Fia repetiu a frase que estava escrita no jornal. E a mãe surtou!
_ Você está lendo? Meu Deus, essa menina está lendo!
E a família toda soube que a menina lia igual papagaio: ela repete e fala o que está escrito, mas nem sabe o que lê...
Chegava visita e a menina tinha de buscar um jornal pra mostrar que sabia ler.
Mas durou pouco o entusiasmo da mãe.
É que a Fia parecia que vivia com a cabeça nas nuvens. Escrevia no ar.
Descobrir as letras, juntar as letras, escrever palavras... Fia não parava! E ela rodava, rodava, rodava e, num repente, parava, do nada, e estendia o braço, e esticava o indicador e escrevia, e escrevia e escrevia... no ar!
A lapada na mão veio com vontade e xingamento da mãe. Cada frase parecia um soco:
_ Menina mais escalafobética! Cheia de mania! Te arranco o couro! Palerma! Aprendeu a escrever e fica com essa boca aberta! Esse braço no ar! Riscando o nada! Isso, quando não fala sozinha! Só falta babar! Escalafobética!
Fia sentiu o ardume na mão, da lapada! Correu pro quarto, pra chorar. Com muita raiva! Raiva de si mesma! Afinal, a mãe já tinha corrigido, já tinha prometido surra, já tinha comentado com o pai (e ela ouviu!) essa menina parece palerma; fica escrevendo no ar. Na próxima vez, vou lascar a mão nela.
Com o pai a mãe falava macio, contando, parecia que tinha dó dela; mesmo com raiva...
E ela parou? Parou. Depois da lapada e do choro.
Quando não estava na escola, Fia ficava no quintal. Com as árvores. Falava com as árvores. Abraçava, com seus bracinhos magrinhos, o tronco do pé de manga sabina; a goiabeira; o pé de caju. Sozinha, cantava música da igreja que aprendia na missa rezada em latim: “Ave Maria, gratia plena, dominus tecum, Benedicta Tu...” Música do parque que tinha chegado na cidade e tinha um alto-falante que tocava, na maior altura, aquele som que cutucava os ossos e arrepiava os cabelinhos do braço: “Tornei-me um ébrio e na bebida...” Subia nas árvores e ficava pendurada, de cabeça pra baixo...
Alegria mesmo, quase tão grande quanto a de aprender a ler, foi quando a professora contou que não podia ficar estragando papel; que papel custava caro; que papel era feito de árvore!
Fia nem acreditou!
Já tinha sete anos essa abraçadora de árvores que nem tinha conhecimento de coisa assim tão importante!
A página 65 do livro predileto traz a narração das preliminares do sexo praticado por Aureliano e Pilar Ternera. Satisfeita a ansiedade da carne, ela entende que ele a procurou, mas, em seus devaneios de prazer, era uma outra quem ele tinha nos braços, entranhada na sua alma e no seu gozo. Pilar pergunta e ele responde: Remedios! E Pilar Ternera o ajuda a abrir as portas da felicidade.  E Aureliano e Remedios se casam.
Sofia virou uma devoradora de livros.
O autor de cada livro é a Pilar Ternera que abre todas as portas.
Sofia costuma encostar, no peito, o livro aberto, como se o abraçasse, sempre que alguma parte lida a faz flutuar. Sempre que os acontecimentos todos – somatizados - são sintetizados num momento de estupor que a paralisa...
O livro da vez e ela, em simbiose, voltados para o sentir.
Depois que aprendeu a morar nos livros, Sofia ainda estudava, ainda sonhava, namorou, viu filmes, viu TV, casou-se, teve filhos, teve netos, envelheceu...
Não foi de pedrinhas de brilhantes o chão que ela pisou.
Foi de devaneios e prazeres o chão que ela desenhou, sempre que sobrava tempo e ela mergulhava nos brilhantes dos livros e dos personagens todos que moram nas histórias e misturam a realidade e a ficção.
As pessoas se perdem na caminhada. 
Mas os livros, as personagens e peripécias não.
Ao acordar, na manhã daquele novo dia, o livro da releitura a olhava da escrivaninha.
Ela se lembrou do dia que esperava a filha voltar de uma viagem, no aeroporto de Brasília, e viu uma moça sentadinha, encolhidinha de frio – chovia muito e era verão! - lendo o Cem Anos do Garcia Marques. Sofia se aproximou e perguntou se era a primeira vez que ela o lia. Com olhinhos de encantamento, a moça que esperava o voo para Palmas, a capital do Tocantins, disse que sim, que estava adorando, que não conseguia parar de ler... Sofia contou que já o tinha lido muitas vezes e que morria de inveja de quem o lia pela primeira vez... A mocinha se despediu dizendo que tinha certeza que também o leria muitas vezes.
Sofia deixou a cama, carregando um sorriso, e foi lidar com as horas do dia que a mantinham no chão, com a certeza que o livro a esperaria e abriria o caminho das nuvens quando ela precisasse voar...

                                         Sítio Rosa Mística, janeiro de 2014 

sábado, 1 de março de 2014

O PÃO-DE-MEL



A tia Carminha é craque na sobremesa! Nota MIL! Rainha dos cupcakes, dos bolos confeitados, dos doces variados, manjares, docim de festa, brigadeirão...
Um crime de lesa-silhueta!
No domingo passado, a surpresa foi um pão-de-mel!
Que maravilha!
Acabado o almoço e revelada a surpresa, todos se posicionaram em torno do tesouro.
Enquanto a delícia era saboreada, meus hóspedes, uns saguizinhos, apareceram à janela da cozinha. No horário de sempre! São adestrados, há umas 20 gerações, a pedir comida assim, na janela. Nunca entraram: eles têm o lugarzinho certo pra serem servidos. Antigamente, eram: bolo de fubá; gelatina e geleia de mocotó. Agora, estão recebendo apenas doses diárias de geleia. E, de vez em quando, se a vó estiver disposta, tem bolo. A Giovanna ficou com dó, quando me viu contando pros danadinhos que só tinha geleia, porque o vô tinha comido o último pedaço de bolo, no café da manhã, e sugeriu, inocentemente:
- Dá um pedaço de pão-de-mel.
Quase apanhou! Onde já se viu? Se macaco sabe apreciar quitutes assim elaborados...
Pois a vó aprovou e consentiu. E ela contrariou a maioria e foi lá e pôs um pedaço bem pequenininho. Eles cheiraram e nem experimentaram! Pode?
Foram muitas as conjeturas, levantadas pelos observadores da natureza, que continuavam à volta do bolo/pão-de-mel/manjar de deuses: é engordante, eles preferiram evitar; escutaram que nós achamos que não eram merecedores e esnobaram a turma; não comem o que vão ver uma vez a cada 15 anos; já comeram por aí e pela aparência, acham que é do mesmo...
Pois é, tia Cármen, fique sabendo que a turminha aprovou.
Apesar dos pequenos terem detonado a gelatina colorida (com direito a leite “começado” por cima).
Só um pedido: quando fizer o pão-de-mel, não faça surpresa!
Ou traga num dia de sol, quando a meninada gasta energia na piscina.
Mais um domingo de menino pulando, gritando, brigando, tocando o terror dentro de casa e a casa cai, ou muitos de nós vamos pedir asilo noutra praça...  
De todo jeito, tia querida e paparicadora da meninada, valeu, e muito!, passar uns perrengues saboreando a iguaria.