A Nona Rosa está
sepultada no Cemitério de Ipuã, desde 13 de dezembro de 1964. Ela foi um misto
de bondade e energia que deixou marcas profundas na minha vida. No início da
segunda metade do século passado, quando se falava que a pessoa era enérgica,
misturava-se o sentido do termo braveza com o de retidão. Minha Nona era uma
pessoa enérgica!
Em fevereiro de
1964, quando eu estava com treze anos recém-feitos, nossa família veio de
mudança, pra Taguatinga, no Distrito Federal. Na cidadezinha natal, ficaram muitos
dos meus entes queridos. Entre eles, a Nona Rosa.
Era uma senhorinha
de caráter, que prezava a honra e os bons costumes. E era respeitada até quando
precisava chamar alguém da família de volta ao bom senso...
Apesar de ter
levado uns bons pitos dela, durante os poucos anos de convivência, eu a
respeitava e admirava. Na mesma proporção do meu temor.
Aos dez anos,
vesti minha primeira calça comprida e fui, a mando da minha mãe, mostrar minha
roupa nova pra Nona Rosa.
Ficou muito
bonito, disse minha mãe! Vai lá mostrar pra Nona, depois vai mostrar pra tia
Arlinda e pra tia Pina...
Era mesmo um
lindo modelo que minha mãe copiou das revistas da moda e costurou, ela mesma!
Minha mãe sempre foi muito prendada! O modelito era a grande novidade naquele
comecinho dos anos 60! As mulheres se permitiam ser mais ousadas e a moda
retratava isso muito bem! Quem diria, mulheres usando calças, imitando homens!
Almocei e fui, primeiro, à casa da tia Pina. Ela não gostou. Mas nada falou
sobre não gostar. Fez comentários sobre o tempo dela, de moça que trabalhava na
roça, e contou que as moças de então usavam calças do tipo que homem usava, mas
eram usadas por baixo das saias longas. Era costume. Era vestimenta de proteção
contra o sol. Também usavam camisas de mangas compridas e lenço nos cabelos, amarrado
sob o queixo, além de chapéu... Mas, assim, mostrando a divisão da bunda, as
moças do tempo dela não usavam, não...
Ou seja, fez uma
ressalva brava - dissimulada como se fosse um comentário velado - mas uma ressalva
explícita para a mocinha que começava a entender das coisas do mundo...
Saí da casa da
tia Pina e fui pra casa da Nona, toda importante, ainda me sentindo moderna e
chique... Levei um baita susto; e só não apanhei porque fui esperta e saí
correndo. Mas, mesmo de longe, ouvia a Nona, aos gritos:
- Fala pra sua
mãe que ela vem aqui!!!! Onde já se viu? Na nossa famia num tem moça
desfrutável! E vai tirar essa carcinha, sua indecente! Isso é roupa de homem! E
vem de novo, vorta aqui sem essa poca vergonha, ou eu corto essa carçola na
tesoura!
Foi um escarcéu!
A Nona pôs a família em polvorosa! Contou pra todo mundo que apareceu na casa
dela, nos próximos meses. Vi essa história sendo contada, de muitas maneiras,
por muito tempo. Nunca achei graça!
Eu sabia bem que
a Nona era muito brava, pois eram muitas as histórias que comprovavam isso.
Hoje, Nona, depois
de passados cinquenta anos, depois de ter assistido a tantas mudanças de
costumes, eu a entendo, perfeitamente. Era um tempo de cuidados com a
reputação. Os mais velhos tinham a obrigação de evidenciar o entendimento do
mundo para os seus descendentes, para prevenir excessos.
Muita coisa
mudou! Muitos têm falhado neste propósito!
Sei, no entanto,
Nona Rosa, que entendi e pratico o significado do seu o recado. Cabe a nós
passar aos nossos descendentes o sentido da vida. Vestindo saias, ou calças,
não importa mais... O que importa - e eu mantenho dentro de mim - é o respeito
que devemos ao legado dos que nos antecederam, à base da simplicidade, do
trabalho, da retidão e do amor à família...
Lembro-me que,
daqui do DF, só soubemos da sua morte uma semana após ter acontecido. E era um
sábado. E que foi um dia muito chuvoso. E, além de rezar pela sua alma, eu
também exercitei – bastante – a minha memória fotográfica, tentando resguardar
no coração e na mente as cenas vividas ao seu lado.
Minha homenagem
e agradecimento são constantes, mas, hoje, têm um misto de saudade e alegria.
Alegria porque a figura matriarcal pulso firme que a senhora representa, na
memória da família, é padrão que vejo repetir-se nas netas, nas bisnetas, nas
trinetas, nas tetranetas... e vai seguir sendo multiplicada pelas gerações
seguintes...
Desafio, aqui,
os homens da família a contestar este legado...
Alguém se
habilita?