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quarta-feira, 4 de março de 2015

QUANDO EU MORRER

O poema “Quando eu morrer” foi publicado por Mário de Andrade no livro Lira Paulistana, em 1942, três anos antes de sua morte. Mário de Andrade escreveu uma primeira quadra assim: “Quando eu morrer quero ficar/ Não contem aos meus inimigos/ Sepultado em minha cidade/ Saudade.” E continuou divagando, esquartejando-se e distribuindo seus membros, seus sentidos, os sentimentos... num poema inteiro que vale como uma declaração de amor à cidade de São Paulo, à cidade onde ele nasceu. Minha quadra favorita é a quinta: “O nariz guardem nos rosais/ A língua no alto do Ipiranga/ Para cantar a liberdade/ Saudade...”. E, como última estrofe, primorosa, vem: “As mãos atirem por aí/ Que desvivam como viveram/ As tripas atirem pro Diabo/ Que o espírito será de Deus/ Adeus.”
Ao contrário do poeta, não divago sobre meu combalido esqueleto: não me pertence decidir sobre o destino desta embalagem que me tem servido há 64 anos. Inspirada no poeta, no entanto, ouso garantir que vou continuar perambulando pela minha cidade. Com toda prerrogativa que minha memória me oferecer. Porque entendo que, ao dispor do corpo, a liberdade transcende o tempo. Em CinemaScope, em widescreen, no meu próprio formato, e com lentes mais poderosas que as anamórficas criadas pelo então presidente da Twentieth Century Fox, em 1953, vou reler cada página escrita com meus próprios passos, usando lentes especialmente projetadas pelo meu coração que, a exemplo do que determina Mário de Andrade, referindo-se ao seu, o meu coração também vai estar bem vivo.
Vai ser uma epopeia a minha revisita aos meus momentos. De menina-moça; de moça-menina; de mãe-menina... Sem aquele sentimento de tensão pela incerteza do porvir.
Um dia, uma mocinha me disse que morava na Zagá. Era uma colega de turma, do Cemab. Ela precisou explicar-me o significado. Naquele tempo, meu pai caminhoneiro não media esforços em passear com a família. Passei muitas vezes pelas quadras H, na carroceria de um caminhão Chevrolet, mas nem sonhava em prestar atenção ao endereço, ocupada que estava com as minhas circunstâncias e angústias e sonhos.
Costumo ter muita paciência quando acontece de alguém perguntar meu endereço (mesmo morando em chácara, minha referência é em Taguatinga) e, após anotar, a pessoa vir com a pergunta: é Taguatinga Sul? Respondo que sim e acrescento: você mora em Taguatinga? Sendo sim, ou não, a resposta, explico que o Q é de Quadra e que o S é de Sul. Porque desde que não entendi o significado de Zagá percebi que pertencimento passa pela obrigação de conhecer e reconhecer as adjacências.
Pois os endereços todos, nessa nomenclatura tão nossa, vão ser espaço livre para me debruçar sobre a eternidade.
Na QSB, onde vivi decisões que definiram meus caminhos, atalhos e descaminhos; nas quadras da QSA, QNA, CSB, QSC, QI, QNE, QNG, QSD, QSE; QNL; nas ruas da Samdu – sul e norte; e da Comercial – norte e sul; nos clubes; nos cinemas; nas igrejas, nas escolas; nas praças, hospitais... está decidido! cada pedacinho da nossa cidade - construída com a nossa esperança de ser - vai abarcar minha essência.
Porque, de nascimento, sou paulista. Mas de escolha, pertinência e teimosia, sou taguatinguense.
Costumo dizer que vou viajar muito depois.
Por ter escapado de um acidente sinistro, em 86, não encontro prazer em viajar. Tenho adiado minha ida a muitos lugares... Se depender de mim, vai correr muita água embaixo da ponte até chegar o dia do embarque...
Também vou me permitir muitas idas à minha cidade natal: tenho desenhos mágicos de interação com parentes e amigos de infância que pretendo colorir e enfeitar com glitter... Do alto da torre da minha igreja, ao lado dos sinos da minha aldeia, quero espichar meu olhar de 360 graus para quando meus sonhos vinham em borbotões e, mesmo esquecidos, no tempo e no espaço, foram estocados e serviram de reforço para a minha fé no concreto da vida.