Remexendo fundo de baú
Não tenho lembrança se a biblioteca da
UnB foi invadida à tarde, ou pela manhã. Não sei o dia e estou com preguiça de
buscar a informação correta... Eu estava com 17 anos, e cursava o segundo grau, no Ciem.
Tratava-se de uma escola onde o ensino público era praticado de um jeito diferente. E, para entrar, o aluno passava por um “vestibular”. As aulas aconteciam, com
enfoque e didática bem atípica, em dois períodos diários.
No dia da invasão, no horário do
recreio, duas colegas e eu passeávamos lá fora, na frente da escola, caminhando,
à beira do asfalto, descendo para o estacionamento, devagar, desatentas,
conversando. E eu estava do lado esquerdo da Isabel, bem perto de onde passaram
os caminhões... Caminhões que apareceram do nada. E seguiram, com firme
determinação, rumo à UnB; passando pelas curvas acentuadas da pista asfaltada
de acesso ao nosso santuário de promessas de um futuro que a magia da educação
concretizaria. O modelo dos caminhões era daqueles antigos, com bancos, na
carroceria, carregando muitos policiais fardados, e cães.
Enquanto passavam, eu levei, de graça,
uma cassetetada, no braço esquerdo. Com força. Lembro-me da dor e da
solidariedade dos colegas que comentaram muito, o incidente; no dia, e nos
próximos, enquanto durou a marca roxa...
De família pobre (meu pai tinha um
caminhão de mudanças e minha mãe era sócia em uma mercearia de porte pequeno),
meus estudos eram bancados, com sacrifício. Porque, apesar de não pagar
mensalidade, manter-me em escola, na Asa Norte, sendo moradora de Taguatinga,
onerava muito o orçamento familiar. E eu ainda fazia inglês, na Thomas
Jefferson.
Meus pais empenhavam-se – muito – para
que eu tivesse oportunidades. Se tinha uma coisa que não me preocupava, naquele
tempo, era a situação política do país!
Foi o acaso que contribuiu para que eu
estudasse ali, no Ciem. Um incidente que culminou com a expulsão de parte
expressiva de uma turma abriu a brecha para que entrássemos, fora de época. Uma
amiga, a Isabel Perna, chamou-me para fazer o “vestibular” que nos gabaritou.
Todos que fizemos as provas entramos. E isso gerou procedimentos de bullying, ao
longo de todo o nosso percurso, naquela escola que nos foi de grande valia.
Tive uma colega de classe que nunca me dirigiu a palavra, nunca respondeu a um
cumprimento meu, nunca olhou para mim... Sempre entendi a postura dela: não se
sentia bem, acolhendo quem, por WO, tomou o lugar de gente que merecia, de
verdade, estar ali...
De Taguatinga, éramos uns nove, ou dez.
A já citada Isabel Perna (foi o irmão dela, o Pedro Perna quem nos alertou para
a chance); o irmão Nonato Perna; a Liana Gonzales; a Nelize de Araújo Santos; o
Ivon Lopes; o Vicente Vives Gil... fomos os que pegamos carona e entramos na
escola de elite que tinha a nata da juventude brasiliense, no seu quadro
discente. Pela manhã, as aulas iam de 7:30h até 12h e, à tarde, de 14h às 18h.
Lá fora, no estacionamento, o movimento dos inícios e términos de turno era,
estranhamente, pontilhado de carros chapa-branca, com motoristas uniformizados,
que levavam e buscavam os filhos dos funcionários públicos do alto escalão;
sempre uma mordomia. Tínhamos como colegas de escola o Paulo Otávio, o Collor,
o Luís Estêvão e tantos, tantos mais...
Cursei Letras e Biblioteconomia, na
UnB, enquanto criei 4 filhos e trabalhei na então Fundação Educacional do DF.
Fui professora de língua portuguesa; coordenadora local e intermediária; chefe
da Seção de Bibliotecas Escolares e Comunitárias – Sebec, do DF; coordenadora
de estágio e, atualmente, trabalho como revisora de textos (tanto técnica,
quanto linguagem científica e de criação literária), em língua portuguesa.
Tenho meu nome de revisora em centenas de livros e dissertações e teses. Depois
de aposentada, cursei um mestrado em Educação.
Meu tempo de Ciem foi pesado – foram
muitas batalhas e perdi algumas. Para mim, o Ciem foi um portal que rompi, na
raça, sem mágica. Foi um tempo valioso, gratificante, emblemático e traumático.