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quinta-feira, 16 de julho de 2015

A ODISSEIA


A Clarisse chegou na hora do almoço e ela e a Juju se esbaldaram, brincando até não poder mais. Dormiram cedo. Cansadas. Não é mole ter de inventar brincadeiras, e pular na cama elástica, e andar de bicicleta por horas... A ansiedade para interagir muito e curtir férias juntas detonou as duas.
Na hora de dormir, ouvi que tinham planos para a manhã do dia seguinte:
- Você me acorda, Clarisse! A gente vai de bicicleta lá na fazenda ver os porquim.
Achei graça! A Juliana chama a parte baixa da chácara de fazenda. Tem sentido! Porque lá é onde tem porcos e bezerros. Mas só vão até lá quando um adulto leva.
Depois que tomaram café, seguiram para a área onde fica a cama elástica e eu me distraí fazendo minhas obrigações.
Demorei pra sentir falta das meninas. Depois de chamar até, entendi, assustada, que elas tinham descido pela estrada. Errei quando não levei as meninas a sério! Não tinha atinado que a trama das “inocentes” estava em execução, porque a bicicleta estava na cozinha. Elas tinham combinado que iriam de bicicleta!
Já pronta para ir atrás; vi as duas chegando de volta. Tem uns 800 metros da minha casa até a “fazenda”. Andaram quase dois quilômetros, portanto!
A Clarisse, toda sorridente, trazia uma gata no colo. Chegaram pedindo água e almoço!
Resolvi, “didaticamente”, tocar o terror para evitar novas incursões assim perigosas. E comentei que deram sorte de não encontrar o homem que carrega crianças. E fantasiei bastante. Uma das fantasias mais fortes foi a paulada na cabeça, pra desmaiar e não gritar, antes do homem mau pôr a criança no saco e levar embora... O papo rendeu! A mãe da Juju chegou e ficou brava e ajudou a assustar as duas, com mais fantasiosas personagens que carregam criancinhas. A tia Gisele chegou, pra trazer o Rafael e a Taís para passarem a tarde e pôs mais lenha na fogueira...
E a vovó ficou sozinha com os quatro. E com o medo dos quatro! Sem o direito de ir ao banheiro! Porque onde a vovó estivesse, os quatro estavam por perto.
E a gata?
Antes mesmo do almoço, a danadinha tinha sumido pela casa. De vez em quando, ouvíamos o miado dela. Quando acontecia o miado dolorido e tristonho (tadinha! tá chamando a mãe! tá com fome! tá desesperada sem saber como vai ser sem a mãe dela!...), a meninada, sob o comando da vó, partia atrás do som...
Qual! Nem sinal da bichana.
Concluí que ela estava no telhado e convenci os meninos a irem pular alto na cama elástica pra enxergar a gatinha no telhado.
Distraídos, deram sossego pra vó que correu arrumar o lanche e, de quebra, teve a inspiração de também fazer amendoim doce, que a turminha adora.
Além de não avistarem a gata, a meninada incutiu que tinha visto, por cima do muro, no pasto, um homem carregando um saco nas costas rsrsrsr
O resultado foi a maior gritaria e um chororô bem histérico da Clarisse (exagerada e dramática) e da Taís, a medrosa aterrorizada que viu, também, o braço de um robô lá perto do portão:
- Vai lá, vó, tá lá no portão, vó, vai lá.
- Tá bom, fica aqui que eu vou lá!
- Não, vó, não vai, não! O homem do saco vai te pegar!
Nós cinco, de mãos dadas, fomos lá olhar pelo portão para ver se tinha alguém no pasto. Não tinha! Também o braço do robô não estava mais lá...
E pensar que as férias mal começaram...
Voltamos para a cozinha e, enquanto lanchavam, avisei que tive a ideia de criar um dispositivo para afastar o medo. Olhinhos interessados se voltaram para mim, curiosos, porque acendeu uma esperança; a de afastar aquele medo horroroso que tinha acabado com a paz deles.
Pus, no liquidificador, o equivalente a dois copos do amendoim doce que tinha feito e fiz paçoquinha. Distribuí porções em quatro cumbuquinhas e convenci a turminha que, quem comesse daquela poção mágica, arrancava o medo do coração.
Mas tinha que comer de olhinhos fechados, com colherzinha, sem pedir água rsrsr.
Compenetrados, eles enchiam as colheres, fechavam os olhinhos e punham a poção na boca.
A Tatá, a mais novinha, fez hummmm por duas vezes! A danadinha sabe apreciar, como ninguém, o saboroso que as papilas gustativas dela detectam!
Comeram tudo!
Pediram água e eu dei, e, mesmo assim, a mágica aconteceu!
Deu certo: o medo foi embora!
O resto da tarde foi uma festa só!
O sossego só era interrompido quando pintava um deles pra pedir mais poção paçoquinha:
-Dá mais vó, pra espantar o medo de vez!
A gata só foi encontrada na hora de dormir! Estava presa no quarto de som, que fica perto da cozinha...



sexta-feira, 3 de julho de 2015

LEGADOS


                 Foto do livro em tela, página 75
À página 66, do livro Nossa Terra, Nossa Gente, publicado em 1977 pelo escritor ipuanense Sebastião Aparecido Cruz, uma notícia publicada no jornal A Semana, edição 51, traz referência a missas celebradas na nossa Igreja Matriz (o autor manteve a grafia original):

“AVISO PAROCHIAL
Recebemos em data de 5 do corrente, o aviso que abaixo transcrevemos:
“A começar do próximo domingo, aos domingos e dias santo de guarda, haverá nessa Matriz duas missas, as 8 horas e as 16 horas.
Sant’ Anna dos Olhos D’ Água, 5 de maio de 1932.
O Vigario. P. José M. Brandi”

Em seguida, vem a nota, na mesma edição:

“VISITA
Recebemos anteontem a visita do Revmo. P. José M. Brandi, actual vigário desta parochia. Gratos”.
A nota com o título VISITA foi publicada, portanto, no dia 7 de maio de 1932.

Meus pais, Ézio Gerin e Jandira Mapéli Gerin, nasceram em Sant’ Anna, no ano de 1926. Em 48, a cidade passou a chamar-se Ipuã. Nessa data citada na edição do jornal, tinham 6 e 5 anos, respectivamente.
Uma viagem, imaginar o que era nossa cidade, naquele tempo!
Acho de grande importância ler sobre o passado.
Acho que todos deveriam deixar sua história escrita para que os descendentes tenham conhecimento do legado que receberam.
Essas notícias de edições passadas de jornal evidenciam como as circunstâncias eram diversas das que nós vivemos hoje... Ou das que vivemos na infância e adolescência...
Minha primeira comunhão, por exemplo, foi muito representativa, num tempo quando a religião era à base do temor a Deus, muito mais do que o amor a Deus...
Foi no dia 30 de novembro de 1958. Eu tinha acabado de completar 8 anos. Não tenho fotos, não tenho mais o santinho que meus pais mandaram fazer em gráfica para distribuir como recordação. Mas tenho, com certeza, lembrança marcante do momento quando, ajoelhada, aos pés do altar, vi o padre aproximando-se...
Nas aulas de catecismo que antecederam aquele momento, ouvi casos de pecadores que teimaram e foram receber a hóstia com a alma suja! Que absurdo! Então, coisas terríveis aconteceram! Ah, a imaginação de quem quer atemorizar uma criança é mesmo prodigiosa!
Tinha ido ao confessionário no dia anterior e, com certeza, se não pequei por palavras, atos e omissões, tinha pecado em pensamento! Temi, pois, que me acontecesse o pior! Não me lembro qual foi meu pecado nesse ínterim confessionário/hora da experiência com a primeira hóstia; mas tinha pecado, pois não consegui dormir direito na noite anterior.
A missa era, ainda, em latim. O padre e os coroinhas ficavam de costas para os fiéis. Era um tremendo marasmo; um silencioso e pesado tédio! Só tínhamos a nos animar o badalar na hora dos sacramentos. Porque vinha carregado de simbologia, com o padre e o castiçal e uma toalhinha branca e a hóstia sendo protagonistas de um ritual fascinante; e era o prenúncio de que chegava a hora da comunhão.
Meu temor persistia: e se, na hora que o padre viesse com a hóstia pro meu lado, e eu abrisse a boca para recebê-la, labaredas saíssem e queimassem a mão dele e ele visse o demônio, em pessoa, dentro de mim? Ou, se minha língua, em contato com a hóstia sagrada começasse a sangrar?
Trago comigo, até hoje, esse pavor.
Mas, com certeza, não me impediu de cometer meus pecados!
O ser humano é extrema e narcisicamente autocondescendente. Só não perdoa erros nos outros. Somos assim pela própria natureza! No entanto, acho que eu, particularmente, tenho plena noção de que não aceito comigo o que não acho certo acontecer com o outro... Eu me policio (todos pensamos assim!)! Então, tenho discernimento! Mas, e se eu tiver deixado passar algo? Então, quando eu me aproximar da hóstia, achando que não tenho pecados, algo vai acontecer para mostrar-me que sou hipócrita?
Vai?
Faz muito tempo que não me confesso, nem comungo... Que feio! Mas é assim mesmo... Fazer o quê? Também é legado.
Viajei!
Intencionalmente!
Era muito impactante o contato com a igreja do meu tempo de menina!
E marcou muito!
Marcaram muito também as quermesses!
À página 75, o autor cita as Festas Religiosas: “[...] pensamos que a festa da padroeira seja a mais antiga de nossa tradição” (CRUZ, 1997).
Na sequência, vem o testemunho de Francisco Silva, contando que tinha um ano de idade (em 1913), quando a mãe “[...] Ana Stábile, já participava da festa de Santana. Naquela época eram três festeiros cada dia e esses festeiros traziam, cada um, vários cartuchos de doces caseiros e ficavam na sacristia, pois, logo após a missa, os doces eram distribuídos às crianças” (IDEM, p. 76).
Fiquei pensando que teria gostado muito de viver isso: ganhar doce após a missa...
No seu testemunho, o sr. Francisco Silva conta que Santana comemorava, de maio a julho, os eventos religiosos: “[...] em maio, havia a festa do mês de Maria, com 30 dias de leilões e muito mais; em junho as festas juninas e em julho, 30 dias de festa e leilões em comemoração a nossa padroeira, Sant’ Anna” (IDEM, p. 77).
E acrescentou que a colônia portuguesa comemorou, em 1936, ou 1937, a festa de Nossa Senhora de Fátima.
Era bem festeiro o povo daquele tempo.
Em 1919, a cidade contava com “[...] aproximadamente umas 67 casas, sendo 18 ao redor da praça e umas 22 na avenida Dona Tereza. [...] O cemitério ficava a poucos quarteirões da praça, no local onde hoje é a confluência da Avenida Rui Barbosa com Joaquim Nabuco” (IDEM, p. 77).
Pulei das festas para o cemitério...
Esse específico cemitério não é o atual. Era dentro da cidade.
Ele ficava perto da casa da minha Nona Rosa. Muitas vezes, passando por ali, de bicicleta, sentia que meu coração ia saltar pela boca! Morria de medo do lugar. Minha Nona gostava de dizer que, quando era mais nova, era comum passar por ele e ver que ossos brotavam do chão... Minha tia Arlinda Tazinafo Moris confirmava.
Com certeza, o propósito delas era manter-me bem medrosa! Confesso que foram vitoriosas na empreitada!

Dia destes, converso mais com o livro do escritor Sebastião Cruz e as minhas lembranças...