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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

HOUVE UM TEMPO, EM TAGUATINGA

Aos catorze, alcancei a altura máxima, um metro e setenta e cinco centímetros, que o tempo se encarrega de diminuir.
No Cemab, eram muitos os apelidos. E eu me curvava, ao peso deles. Os que mais me afetaram: espanador da lua; vara-pau; girafa; Belém-Brasília (era o tempo da construção da estrada que serviria para que o Norte fosse desbravado: era uma rodovia comprida e mal acabada; daí a ligação comigo...). Pesadelos povoavam meus sonhos, com medo de nunca parar de crescer. E a pergunta que mais ouvia era: menina, você não vai parar de crescer, não?
Foi em Taguatinga Sul que minha família se alojou, desde o primeiro dia. Depois da primeira casa alugada, ainda passamos por mais duas até meus pais comprarem o lote onde construíram nossa casa.  No lote recém-comprado, um barraco de madeiras se impunha; era um misto de feiúra e desolação.
Até chegarmos a esta penúltima morada - o barraco de madeiras - o desbravamento foi um tempo sofrido. Contrariando minha indisposição inicial, adorei morar no barraco. Sentia-me bem, dentro dele. Sinal de pertencimento e realismo? A menina em mim fazia de conta que brincava de casinha. A mocinha tinha vergonha do primeiro namorado que, de vez em quando, passava de carro, devagar, naquela rua onde os muros e os limites entre as casas não tinham sido, ainda, necessários. O namorado, às vezes, parava o carro e olhava um olhar comprido pro lado do barraco e acabava desistindo. Lá dentro, pelas largas frestas entre as tábuas, a mocinha vigiava e torcia pro moço desistir mesmo. Não ficava bem...
Toda a cidade era um mar de barracos, salvo algumas casas de alvenaria - que pareciam pintadas a esmo -, muitas do tipo meia água, outras poucas mais elaboradas. Era aquele o cenário onde estávamos plantados e sentíamos a energia que nos induzia a perseverar, a buscar o futuro.
Era tudo tão intenso que, enquanto escrevo, custo a acreditar que em menos de três anos vivemos tantas circunstâncias impensáveis e superamos tantas adversidades. E chegou o momento quando pisamos na sala da nova casa, prontinha, cheirando a tinta fresca, imponente, na frente do barraco que precisou ser demolido.
Aprendi a sonhar mais vezes do que minha imaginação suportava, devorando livros que pegava emprestados, na minibiblioteca daquela escola que eu frequentava, nos dois horários. De manhã, o cenário era a escola: a sala-de-aula, a biblioteca, a quadra de esportes. À tarde, a biblioteca, a quadra, ou as ruas próximas à escola, onde abrandávamos a febre de bola, correndo e suando, sendo felizes enquanto a queimada, o andebol e o vôlei eram o centro do nosso mundinho.
A Taguatinga daquele tempo era áspera. A escola era o centro do universo. O movimento de gente na secretaria da escola evidenciava que as pessoas continuavam chegando à cidade e queriam seus filhos estudando. Já conhecia quase todos os colegas, mas não tinha amigos. Na escola, eu vivia o papel de construtora do meu futuro colorido.
Com o tempo, a cidade natal virou uma história escrita no passado, com personagens inesquecíveis, abrigados no meu coração. De vez em quando, meus pais decidiam que era hora de visitar parentes e de matar saudade. Viajávamos quase oitocentos quilômetros até o interior de São Paulo e era real a certeza que o passado estava guardado a sete chaves, como um tesouro intocável, de valor inestimável. O coração transbordava de alegria, ao percorrer cada pedacinho da cidade natal, misturando o passado e o presente... Cada olhar refletindo pessoas queridas, pulsando o prazer de voltar à terra querida, ouvindo o badalar dos sinos da igreja matriz...
Mas, a cada nova visita, mais e mais se acentuava a certeza de estranhamento, de perda, de choque de realidade...
Nasci lá, renasci aqui. 
Aquele coração, que transbordava de amor pelos que ficaram no passado, deixei-o aconchegadinho no peito; e abri espaço para um outro, tão importante quanto, todo em branco, onde desenhei, a cada novo dia, sem pressa e com muito empenho, cada novo minuto.
Entendi - e nunca me esqueci - a necessidade de firmar o pensamento no momento vivido, aproveitando o que a vida oferecesse, acreditando que conquistaria tudo que meus pais buscavam quando se mudaram para Taguatinga.

O lote que abrigou o barraco de madeira e, depois a casa nova, era vizinho a um espaço cheio de mato e lixo, onde, num futuro bem próximo, construíram o Clube dos 200. Com quase 16 anos, estudava o ensino regular, de manhã, fazia muito esporte nas quadras do Cemab, à tarde, e, três vezes na semana, pegava ônibus para a W3 e ia estudar inglês, na Casa Thomas Jefferson.