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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

UM CONTO: NÃO É FÁCIL SER GENTE

É sábado. Diana e Samuel encontram-se ocupados, atendendo clientes, no petshop que montaram há um ano. Ainda não se acostumaram à barulheira e movimento, na seção onde são lavados os cachorros. É uma loja de trabalho constante e, por enquanto, os resultados financeiros não são satisfatórios. Não conseguem esquecer que, na semana seguinte, serão muitos os boletos a vencer. Eles precisam fazer dinheiro naquele específico dia. Os serviços de banho e tosa têm, infelizmente, os preços tabelados, muito por baixo. Tabelados em função da concorrência, que é muita. Mas é o serviço que atrai o cliente que, além de deixar o bichinho pra tomar banho, leva a ração, uma latinha de carne processada, leva uma roupinha, um ossinho artificial, carrapaticida, coleira anti-pulgas...
Além do casal, trabalham, na loja, a tosadora e dois ajudantes. E um responsável técnico. No caso, uma veterinária, a doutora Yara. Ela assina a loja e atua preventiva e curativamente, dando assistência em domicílio, aos animais que utilizam serviços daquele petshop.
Ela havia acabado de chegar de uma consulta, quando soube que tinha acontecido uma tragédia. Uma cachorrinha cocker-spaniel tinha conseguido fugir da gaiola onde esperava sua hora de beleza e tinha vazado rua abaixo. O Daniel, um dos ajudantes da tosadora, saiu em disparada atrás da danadinha e ela, felizmente, estava a salvo, novamente, na gaiola. Só que, quando conseguiu fugir, a cachorrinha não estava só. Tinha também um yorkshire que, depois do fuzuê, não conseguiam localizar. Muito pequeno, saiu sem que ninguém o visse.
No mesmo edifício onde fica a loja, no quarto andar, Meire acabou de tomar banho e vestiu-se para descer e buscar seu cachorrinho, no petshop que fica no térreo. O nominho dele é Ramush e foi presente de casamento do marido. Tem sido um alento esse amiguinho feliz. Sem ele, Meire ficaria só, nas noites de plantão do marido, que é médico-residente, no maior hospital público de Taguatinga.
Ramush é zero, uma pelotinha de pêlos, orelhinhas apontando pra cima, atento, engraçadinho, com um andarzinho que imita o trotear de uma miniatura da miniatura da miniatura de um cavalo mangalarga marchador. Está sempre por perto. Perto dela, quando estão só os dois. Perto do Édson, o marido, quando ele se encontra de folga, e Ramush tem de optar pelo preferido. Mas essa preferência não provoca ciúme. Pelo contrário. Meire também é apaixonada pelo marido e acha a escolha muito justa.
Naquele final de semana, Édson estava de plantão e Meire desceu com o Ramush, para dar umas voltas pela quadra e, antes de voltar pra casa, resolveu deixá-lo no petshop; a loja à direita da portaria do seu edifício, para tomar um banho caprichado. Assim que o deixou, já sentiu uma pontadinha no coração, com dó do bichinho, por causa da muvuca que ouviu lá dentro. A sala de banhos, no sábado, fica cheia de cachorros de todas as raças e tamanhos, numa barulheira danada, todos latindo freneticamente, reclamando por estarem presos, ou por conta do que sabem que vão passar.
  Assim que chegou ao térreo, já na entrada da loja, Meire soube que Ramush estava sumido. Com o coração sobressaltado, sem conseguir conter as lágrimas, ligou para o marido. O hospital fica a oito quadras dali. Ele gastou uns dez minutos pra chegar e trouxe com ele o corpinho sem vida do Ramush, que ele recolheu no caminho. Ramush tinha sido atropelado e o Édson o encontrou estendido, encostado ao meio-fio. Tinha morrido na hora, conforme informou um menininho da casa em frente ao acontecido.
Quem nunca teve um bichinho de estimação, nem viveu a cumplicidade de olhares e entendimentos telepáticos na interação com ele, nunca vai entender a dor do casal órfão do Ramush.
Foi um chororô só. De um lado, Meire e Édson, que se abraçavam, sem acreditar na perda irreparável, pensando na dor do cachorrinho quando se viu perdido na rua, sem o zelo e cuidado dos seus donos... Do outro, Diana e Samuel, que sofriam vendo o sofrimento do casal, e não conseguiam afastar o pensamento que direcionava para o prejuízo financeiro que significava essa morte...
A veterinária apossou-se do corpinho e entrou com ele no seu consultório, envolvendo-o com um jaleco branco que estava sobre sua cadeira, tentando amenizar o impacto da cena. Também porque a expressão de dor estampada no rostinho do Ramush incomodava muito. Evidenciava que os momentos finais tinham sido terríveis. Meire e Édson a acompanharam até o consultório, chorando desesperadamente, e acalmaram-se à proporção que entendiam que tinha sido uma fatalidade. Yara propôs formolizar o corpinho e, depois então, entrar em contato com eles para saber a decisão sobre o que fazer em seguida. E sugeriu cremação. Meire não aceitou. Chorando, disse que queria ter um lugar para visitar e homenagear a lembrança do amiguinho, mesmo que filho.
O resto do sábado foi de consternação e tristeza.
Na segunda, de manhãzinha, um jornal de TV local armou o maior espalhafato, com o tema. A Meire e o Édson apareceram na tela, muito tristes e chorosos, e mal conseguiram falar. A reportagem mostrou a fachada da loja e entrevistou alguns passantes que acharam uma irresponsabilidade; um absurdo que o dono da loja não cumpriu seu papel e provocou tamanha perda; que esse tipo de coisa devia ter lei pra punir responsáveis... Um verdadeiro massacre moral, contra os donos do petshop. Devia estar faltando assunto mais cabeludo, no universo televisivo. Se bem que noticiário com animais maltratados, ou desrespeitados, tem dado bastante pontuação de audiência, ultimamente.
Com isso, ficou difícil o diálogo entre os casais. E foi preciso contratar alguém para intermediar as negociações. Diana e Samuel estavam parecendo dois zumbis. Dormir era o que menos tinham feito, desde a tragédia do sábado. Tanta coisa pra decidir e deixar esse assunto no passado. Por exemplo, o corpo formolizado só aguenta sete dias até ser sepultado. Era pra cremar? Era pra enterrar? A torcida era para que autorizassem incinerar. Seria uma solução e tanto. Porque a cremação ficaria em oitocentos reais! Esta capital federal tem cada coisa! Só conta com um crematório e ele opera com preços abusivos. Onde já se viu, oitocentos reais pra fazer de um cachorrinho de menos de um quilo um punhadinho de cinzas? Qual!
A veterinária tomou a frente e foi à casa da enlutada. Conversou, conversou, não chegou a consenso algum e saiu amargurada, depois de ver o sofrimento do casal. Nada os consolava. O ponto alto da saia justa tinha sido durante a proposta de substituir o Ramush por um outro yorkshire. Nem pensar!
 Ramush foi posto no congelador da geladeira de uma clínica veterinária em Águas Claras e ficou suspenso o desenrolar do possível enterro. Veio outro final de semana. A notícia então foi veiculada em jornal impresso. Fotos do Ramush, todo feliz, no colo da dona, a Meire. Foto da Meire bem abatida, ao lado do marido, cabisbaixo. Foto da fachada da loja e parágrafos e parágrafos sobre a tragédia e o descaso dos donos da loja que nem recolheram o corpinho no local do atropelamento, na hora do acontecimento drástico: um desrespeito aos sentimentos dos donos!
Na terça, um advogado, contratado pela Diana e o Samuel, foi à casa dos enlutados. O casal propôs as exigências para um acordo: as cinzas do Ramush numa urna dourada; um outro cachorrinho da mesma raça e idade; a responsabilização pelas vacinas e atendimentos veterinários enquanto este vivesse. O advogado entendeu ser um acordo justo.
Assim que redigiu o acordo, tendo o cuidado de estipular um prazo de trinta dias para que a firma cumprisse as cláusulas estipuladas, o advogado voltou ao apartamento da Meire e do Édson, para que o assinassem. Deu-se por satisfeito. As partes pareciam satisfeitas. Mais uma vez, o bom senso tinha prevalecido e as pessoas mostraram que o combinado nunca é caro.
Qual não foi a surpresa do doutor quando, três meses depois, encontrou-se com a Meire e o Édson em um hipermercado de Taguatinga e soube que nada do que tinha sido acordado, na ocasião, tinha sido cumprido.
_ No final de semana que sucedeu à assinatura do acordo, a Diana e o Samuel fizeram a mudança, na madrugada. A loja ficou fechada um bom tempo. Lá, no momento, funciona um salão de beleza, disse o Édson.
A Meire acrescentou:
_ Soubemos que a firma era registrada em nome de um laranja. Nem pensamos em procurar o doutor. Sabíamos que era causa perdida. Aí, descobri que estou grávida e resolvi esquecer toda essa história. Afinal, cachorro e criança pequena não combinam, não é mesmo, doutor? 
                                     Sítio Rosa Mística, 9 de agosto de 2011

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