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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

MEU MODELO DE VELÓRIO

Quero deixar registradas as minhas exigências para que meu velório seja um evento que me deixe usufruir (uma última vez!) de dignidade. Quero a palavra silêncio escrita em cartazes distribuídos pelas paredes do local. Deitada, quero um travesseiro sob minha cabeça, para dar ao meu rosto um aspecto melhor, um ângulo que não deixe em evidência os orifícios do nariz. Estarei circundada pelos candelabros, contendo velas acesas, tendo um crucifixo ao fundo, e terei sobre meu corpo uma mortalha, porque não quero flor dentro do meu caixão. Só vasinhos de crisântemo, aquelas alegres e coloridas flores plantadas e vivas, espalhados no chão, rodeando o esquife, para quebrar o clima tenso e cinzento da presença da morte.
Já vi e já estive envolvida com a morte. Mesmo quem nega, tem por ela o maior respeito, pois não há perdão: seu nome é certeza. As expressões ‘encontrou-se com a indesejada’; ‘chegou a sua hora’; ‘está morto’; ‘deixou esta vida’; ‘partiu desta para melhor’ e outras tantas mais trazem lembranças diferentes, dependendo da história de cada um de nós, mas têm um mesmo significado que é a remissão para a dor, para a impotência e para o sofrimento.
A lembrança de qualquer velório ou enterro é uma lembrança tão marcante, tão impregnante, que defendo a idéia de que devemos lidar melhor com o evento. Em lugares mais civilizados, existe o mestre de cerimonial, oferecem-se serviços de apoio, agendam-se nomes de pessoas que pretendem fazer homenagem ao morto... São ações programadas para dar suporte burocrático à festa. Palavra usada aqui no sentido figurado, com a idéia de ‘episódio fora do comum, extraordinário’, citado pelo filólogo Houaiss, no seu dicionário.
Em recente velório, constrangida, fui aproximando-me da Capela e, com o coração em sobressalto, entrei com a pretensão de ir até perto do caixão e prestar minha solidariedade aos familiares. Havia uma pessoa, um Pastor evangélico, e uma Bíblia era lida, enquanto os presentes deixavam-se ficar no mesmo lugar, à espera de que aquela leitura tivesse fim. Assim que terminou, uma senhora se pronunciou e, a exemplo do que fez o outro, também apoiou-se na Bíblia e leu, leu, leu... Informou, porém que, como a mãe do falecido, ela também era católica. Ou seja, trouxe para o ambiente sua indignação por ter tido um ambiente católico ‘invadido’ por um evangélico! O que sei e vi foi que os dois juntos se apossaram de hora e meia do tempo de convivência que deveria ter sido utilizado pelos amigos e familiares que chegavam e constrangiam-se, sem saber como agir.
Odeio chegar em velório e encontrar as pessoas em pé, fazendo de conta que ouvem alguém que lê um texto que não é capturado nem pela obtusidade dele leitor, quanto mais por quem não se deu ao trabalho de ir até lá para ver alguém ler... Tomei uma decisão: exijo respeito! No meu velório apenas o padre vai entrar e encomendar e benzer meu corpo (quero entrar no céu de alma limpinha!) e pronto! Minha estratégia para que não comecem a azucrinar os meus chorosos convidados será um som, previamente instalado, que será acionado, no último volume se for preciso, assim que alguém abrir a boca para se dirigir ao grupo todo. Se reclamar, é só dizer que era uma última vontade da falecida! Nem pensar! Não quero ninguém querendo se fazer, achando que é o maioral, no meu velório! E tem os cartazes... Lembra-se dos cartazes e da palavra silêncio? Pois é, será um dia para as pessoas se lembrarem que, dali para a frente, só estarei viva no coração e no pensamento delas. Será o meu dia, não quero ninguém ofuscando minha importante saída de cena!
Escrevo em tom de brincadeira, mas a minha aversão verdadeiramente não é calcada na minha vaidade. Acho o momento e as circunstâncias tão sofridas que aquelas palavras improvisadas e desarticuladas, no improviso, afetam-me, revoltam-me, indignam-me... Quem sabe as palavras adequadas a serem ditas e, assim que proferidas, capazes de aplacar o sem jeito, a desesperança, a dor da perda? Ninguém, com certeza! Aquela hora, exige abraços e silêncio e lágrimas emocionadas. Cada um com suas lembranças focadas em seus momentos com a pessoa que acabou de encerrar sua história nesta dimensão...
Quero deixar registrada a minha gratidão aos que comparecerem e prometer que os esperarei com honras e festa, no céu, para compensar terem deixado seus afazeres agradáveis e obrigarem-se a assistir ao meu último evento, um tanto quanto desagradável.

(Escrevi em dez de 2007)

Um comentário:

  1. Missa de corpo presente, nem pensar!!!! Padres e falatórios me desconcentram! Rezem calados, contritos, em interação direta com o Pai!

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