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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A ARTE DE FAZER CHÁ ENFEITADO

No fogão aceso, a caneca preta, com água pela metade, recebeu o preparado de sementinhas de cravo, de erva-doce e de pedacinhos de canela. Ana tinha resolvido dar um tempo nos seus afazeres para beber chá. Sem paciência para esperar a água ferver, voltou para a sala, onde, em frente ao computador, envolveu-se com seus textos e correspondência eletrônica.
Quando se lembrou e correu em direção ao fogão, a caneca ainda tinha um restinho de água, mas achou melhor acrescentar mais. Prometeu aos seus botões que não iria bobear, e dirigiu-se, novamente, para o computador. Envolvida, quando se lembrou do chá, tinha secado mais da metade da metade que ela completara de água. Resolveu beber o que sobrara.
Pegou uma caneca de louça que estava na pia, ajeitou a peneirinha sobre ela e despejou o líquido fumegante. Ao retirar a peneira, tomou um susto, deparando-se com um algo boiando no líquido dentro da caneca. Eca! Um bichinho, todo pernas e braços, bem branquinho, tinha sido pego na armadilha da morte, justamente na caneca onde havia despejado seu chá: o líquido fervente aniquilou a vidinha de uma coitada de uma perereca!
Ana ficou arrasada. Pensava em se deliciar com um chazinho, no entanto, o destino cruel, da perereca, deixou acontecer, para desgosto de Ana e prejuízo da dita cuja, um trágico acidente!
Sensibilizada, não teve como escapar dos pensamentos lúgubres que se encaminharam para as veredas da finitude da vida e da fragilidade das coisas... Logo ela que é tida por si mesma como uma criatura forte, de muita ação. Entrega-se a um chazinho de vez em quando, é verdade, mas nem por isso é daquelas que se deixam abater por pouco.
Continuou com o coração apertado, com os pensamentos enlutados passeando pelos labirintos do seu cérebro. Continuou ainda assustada, sofrida e constrangida por ter causado a tragédia, enquanto despejava, na pia (a mesma pia que era o local predileto da perereca enquanto gozava de vida!), o chá com acompanhamento.
Aproveitou para lavar, com bastante cuidado, as vasilhas que voltaria a usar, porque, decididamente, não iria abdicar do chá. Ficou imaginando se não tivesse se dado conta e bebido o chá com perereca! Argh! Apesar delas serem inocentes e velhas companheiras, e em grande quantidade, e de adorarem fazer malabarismos, saltitando pelas pias da sua casa, uma coisa era a Ana conviver pacificamente com elas e outra, bem diferente, era tomar chá enfeitado com uma delas.
Ainda abalada pelos últimos acontecimentos, muito compenetrada e cuidadosa com as criaturas que conhece (a perereca era praticamente uma hóspede!), programou, para a falecida, uma cerimônia de despedida. Em dobradura, urdiu um barquinho de papel alumínio, que serviu de ataúde para o corpinho horrorizado. Em seguida, Ana foi aos dois banheiros da casa e contou a todas as outras pererecas inquilinas, em voz alta, o que tinha acontecido. Emocionada, explicava que não tivera a intenção e que se sentia muito mal pelo acontecido e coisa e tal, e tal e coisa. E que aproveitava para dizer que o velório estava em andamento, na cozinha, e que o cortejo do enterro seguiria dali a vinte minutos.
Pareceu que a falecida não era muito bem relacionada no pedaço, pois não apareceu uma viva alma. Mesmo assim Ana esperou e não providenciou o ato subsequente até que o tempo estabelecido terminasse, conforme havia alardeado. Nesse meio tempo, fez e deu cabo do novo chá.
Quando chegou a hora marcada e anunciada, hora de dar seguimento à cerimônia, enquanto deixava a cozinha e saía porta a fora, com o ataúde-barco-de-papel-alumínio na mão direita, resolveu colocá-lo, bem visível num galho da mangueira que faz sombra na sua cozinha.
Achou a idéia boa, por dois motivos: adiou o enterro; e deu mais uma oportunidade para quem quisesse se despedir da pobre criaturinha.
A cozinha da casa de Ana tem duas janelas. Uma na parede onde fica a pia: cenário e palco de todo o drama que acabou ocupando-a todo o resto da tarde; e a outra, por onde Ana pode ver o tronco do pé de manga e o galho que sustenta o esquife.
E ela que pensava que a tarde já tinha sido bastante atribulada, nem imaginava o que ainda estava por vir, pois acabou sendo testemunha ocular de um desfecho que não tivera a sensibilidade e esperteza para prever.
E não é que apareceu uma danadinha de uma rolinha e Ana só teve tempo de assistir, boquiaberta, a falecida sendo levada, literalmente, no bico?
Ainda correu para fora de casa, mas era tarde demais. Olhou para o céu, e viu a rolinha voando, toda e toda, se achando, porque tinha ganhado o dia, ao se apossar de uma deliciosa iguaria: uma perereca cozida em chá de condimentos variados e gostinho acentuado de canela.
Ana voltou a ser a mesma pessoa alegre e sorridente de sempre! A perereca cumpriu seu destino sobre a terra! E a rolinha se deu bem.
Na vida, as coisas acontecem assim mesmo... Um minuto empurra o outro que empurra o outro que empurra o outro... E, enquanto o tempo passa, também a vida passa.
E viva o chá! Sem perereca!
AGOSTO DE 2007

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