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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

DE AFETO CAPTURADO

O menino nasceu de mãe triste, na casinha pobre da pequena chácara afastada, bem no interior do estado. Ali os dois vivem e vencem um dia de cada vez. Ele se acha criaturinha protegidinha nesse mundinho de necessidades e migalhas, desde que a mãe esteja por perto.
O menino ajuda a mãe que planta horta de folha: alface e almeirão e couve e cebolinha. A mãe é uma forma que se movimenta e grunhe. Por perto de onde ela andar, ele é a sombra que acorre a cada som dela.
A lida é dura, com chuva ou com sol, se é dia de plantar e cuidar. Dia de colher é pesado igual. É sim. Mas é diferente. Fica no ar um tom de cinza e no coração um aperto de secar a garganta e de não ter quantidade de água que dê jeito, toda vez que é dia de arrancar a plantinha que brotou do chão. Pois acontece que é aí então que a mãe vai pra cidade e deixa sozinho o menino. Sozinho de tudo. Ela vai lá vender a colheita. E o dia não passa e a mãe não chega e o escuro toma conta da alminha do bichinho acuadinho de medo. Com os ouvidos esticados pro rumo da chegada, ele cochila e acorda pelas horas da noite sem fim e sente que o diferente tira do chão a firmeza e a vontade de viver. Até que a mãe se faz presente e tudo volta ao de antes, que continua sendo sempre o mesmo. Vida de tanta lida. Parece até beija-flor, criaturinha sofrida que vem e vai e vai e vem e bate as asinhas num movimento agitado, num sufoco sem fim, numa pressa!
Teve a noite em que ele sonhou que era um. Acordou pra um dia de muito riso de alívio. Qual! Do que conhecia da vida, do jeito que tava, tava muito era bom. Que idéia! Gostava era de ser gente.
Teve também a noite que acabou e o dia clareou e nem sinal da mãe. Que só chegou na hora que o sol cansado se despedia. Ela carregava nos braços uma bolinha parecida com um torrão de terra e passou pela porta da casa, ao lado dele, e foi até o pé de árvore que tinha o ninho do tico-tico. A mãe pegou dois filhotinhos e deu pro torrão que engoliu tudinho, de nem dar tempo de piscar duas vezes. A mãe falou e ele entendeu: é gato e come passarinho. E a mãe e o gato e o menino entraram na casa. A mãe e o gato logo dormiram, enquanto o menino deles não desgrudava o olho.
E aí começou achando graça. E riu. E escorria água dos olhos, coisa que já tinha visto a mãe fazer. E continuou naquela situação de observador, com o coração desapertado no peito. O gato abria os olhos de vez em quando. Ele olhava pra conhecer o bicho que tinha um risco preto em cada olho. E ficou assim, revezando entre olhar o gato e olhar a mãe. Até que dormiu, capturado e feliz.
OUTUBRO DE 2008

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