Luzia
foi sempre uma criatura com os pés no chão e feliz. De uma felicidade latente
que ela demonstrava com o sorriso e com os olhos. Nascida em uma família de
muitos irmãos e muitos tios, teve infância de magia. Os afazeres, na roça, eram
em conjunto. As
músicas eram cantadas em coro (isso ela me contou um dia, lá na minha infância!).
A alegria era uma vibração que transcendia o entendimento. Se
bem que alegria é para se sentir, não precisa ser explicada.
Quando
conheceu o amor, acompanhou-o sem questionar-se. Levou consigo a felicidade de quem
sabe seguir os desígnios de Deus. Sua simplicidade e meiguice eram cativantes.
Distribuía simpatia. Em sua nova casa, já se divisava que o futuro seria de
grandes alegrias. Nasceu a primeira filha; depois o primeiro filho, o segundo
filho e a segunda filha. Quatro alegres crianças.
A
concentração era na própria vida. Preocupações havia, a lida era árdua e
ingrata. Mas não se foge da realidade.
No
início do casamento, o marido, homem risonho, bom e trabalhador, era só
chamego. Com o tempo, foi ficando ausente. Luzia, para não construir muros,
continuou fazendo da sua felicidade a ponte de ligação dos filhos com a alegria
da convivência e com a realidade de se poder contar com o que se tem. Há a
certeza de que hoje estamos aqui. Amanhã, quem sabe onde?
Quem
vê de fora há de achar uma atitude passiva diante dos problemas. Não há de ter
alcance das razões e das ações. Porque amar é doar. A vida que lhe foi dada é
amor em doses diárias. Cabe a ela receber a vida e agradecer. Com alegria. Sempre
sorrindo.
Ao
respeitar e valorizar as histórias cotidianas, recebe-se melhor a morte. Que é estrada que leva
ao que está designado para todos. Cada um a seu tempo. Foi assim com seus pais
e muitos dos seus irmãos. Com alguns amigos e vários tios e uns tantos primos e
conhecidos. Foi assim com a neta de oito meses, que regurgitou e morreu
asfixiada no berço, enquanto dormia o soninho da tarde. Quando isso aconteceu,
aquela alegria que se divisava nos seus olhos, era já uma alegria triste,
pesada, sustentada mais pela fé. “Não há mal que sempre dure...” Como se uma
névoa ofuscasse o caminho do riso que antes vinha do coração e explodia nos
olhos. Era agora um sorriso triste, um costume, marca de um rosto acostumado à
condição de alguém que é passageiro e está quase chegando ao derradeiro...
A
cidade onde nasceu e morreu tem um clima muito quente, na maioria dos dias do ano. O ar pesado, a atmosfera
abafada, um peso a mais que se carrega na lida diária. E muita poeira, apesar
do asfalto e das calçadas lavadas diariamente, uma prática que virou tradição.
O dia só segue seu curso normal depois que se lava a calçada da frente da casa.
É bonito de se ver as mulheres com suas roupas coloridas, o movimento de suas
figuras, os braços que se esticam e encolhem com a extensão das mangueiras e da
água que se espalha e escorre pelo asfalto, lavando, varrendo, afastando
temporariamente a sujeira, a monotonia, o mormaço.
E
chega o dia em que se lê a última página que relata as ações da sua própria
história. Aquela que sintetiza e encerra todos os atos. Que é convite para que aquele que ficou
reconheça-se na realidade do que é presente. Que é emoção para se chorar o
acontecido, para se condoer e despedir de alguém que cumpriu seu destino na
terra e, com certeza, chegou às portas do céu e recuperou o sorriso aberto e a
mesma alegria da infância.
O
dia de calor intenso a tirou da cama bem cedo, como de costume. Preparou o
café. Arrumou a mesa com todos os deliciosos pães, biscoitos, bolos e roscas
que preparava com antecedência. E foi para a calçada, brincar de ser criança,
jogar água para o alto e rever o arco-íris. Um mal súbito, fulminante, e a
queda fizeram com que a festa das mulheres coloridas ficasse estarrecida,
tumultuada e, então, estática. A morte chegara silenciosa e a levara.
O
sol brilhou intensamente naquele dia. Choveu à noitinha, durante o cortejo
fúnebre.
Minha
homenagem de amor à Luzia do Raul, que só nos deixou lembranças boas.
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