Páginas

quarta-feira, 14 de maio de 2014

MEMÓRIAS



Remexendo fundo de baú

Não tenho lembrança se a biblioteca da UnB foi invadida à tarde, ou pela manhã. Não sei o dia e estou com preguiça de buscar a informação correta... Eu estava com 17 anos, e cursava o segundo grau, no Ciem. Tratava-se de uma escola onde o ensino público era praticado de um jeito diferente. E, para entrar, o aluno passava por um “vestibular”. As aulas aconteciam, com enfoque e didática bem atípica, em dois períodos diários.
No dia da invasão, no horário do recreio, duas colegas e eu passeávamos lá fora, na frente da escola, caminhando, à beira do asfalto, descendo para o estacionamento, devagar, desatentas, conversando. E eu estava do lado esquerdo da Isabel, bem perto de onde passaram os caminhões... Caminhões que apareceram do nada. E seguiram, com firme determinação, rumo à UnB; passando pelas curvas acentuadas da pista asfaltada de acesso ao nosso santuário de promessas de um futuro que a magia da educação concretizaria. O modelo dos caminhões era daqueles antigos, com bancos, na carroceria, carregando muitos policiais fardados, e cães.
Enquanto passavam, eu levei, de graça, uma cassetetada, no braço esquerdo. Com força. Lembro-me da dor e da solidariedade dos colegas que comentaram muito, o incidente; no dia, e nos próximos, enquanto durou a marca roxa...
De família pobre (meu pai tinha um caminhão de mudanças e minha mãe era sócia em uma mercearia de porte pequeno), meus estudos eram bancados, com sacrifício. Porque, apesar de não pagar mensalidade, manter-me em escola, na Asa Norte, sendo moradora de Taguatinga, onerava muito o orçamento familiar. E eu ainda fazia inglês, na Thomas Jefferson.
Meus pais empenhavam-se – muito – para que eu tivesse oportunidades. Se tinha uma coisa que não me preocupava, naquele tempo, era a situação política do país!
Foi o acaso que contribuiu para que eu estudasse ali, no Ciem. Um incidente que culminou com a expulsão de parte expressiva de uma turma abriu a brecha para que entrássemos, fora de época. Uma amiga, a Isabel Perna, chamou-me para fazer o “vestibular” que nos gabaritou. Todos que fizemos as provas entramos. E isso gerou procedimentos de bullying, ao longo de todo o nosso percurso, naquela escola que nos foi de grande valia. Tive uma colega de classe que nunca me dirigiu a palavra, nunca respondeu a um cumprimento meu, nunca olhou para mim... Sempre entendi a postura dela: não se sentia bem, acolhendo quem, por WO, tomou o lugar de gente que merecia, de verdade, estar ali...
De Taguatinga, éramos uns nove, ou dez. A já citada Isabel Perna (foi o irmão dela, o Pedro Perna quem nos alertou para a chance); o irmão Nonato Perna; a Liana Gonzales; a Nelize de Araújo Santos; o Ivon Lopes; o Vicente Vives Gil... fomos os que pegamos carona e entramos na escola de elite que tinha a nata da juventude brasiliense, no seu quadro discente. Pela manhã, as aulas iam de 7:30h até 12h e, à tarde, de 14h às 18h. Lá fora, no estacionamento, o movimento dos inícios e términos de turno era, estranhamente, pontilhado de carros chapa-branca, com motoristas uniformizados, que levavam e buscavam os filhos dos funcionários públicos do alto escalão; sempre uma mordomia. Tínhamos como colegas de escola o Paulo Otávio, o Collor, o Luís Estêvão e tantos, tantos mais...
Cursei Letras e Biblioteconomia, na UnB, enquanto criei 4 filhos e trabalhei na então Fundação Educacional do DF. Fui professora de língua portuguesa; coordenadora local e intermediária; chefe da Seção de Bibliotecas Escolares e Comunitárias – Sebec, do DF; coordenadora de estágio e, atualmente, trabalho como revisora de textos (tanto técnica, quanto linguagem científica e de criação literária), em língua portuguesa. Tenho meu nome de revisora em centenas de livros e dissertações e teses. Depois de aposentada, cursei um mestrado em Educação.
Meu tempo de Ciem foi pesado – foram muitas batalhas e perdi algumas. Para mim, o Ciem foi um portal que rompi, na raça, sem mágica. Foi um tempo valioso, gratificante, emblemático e traumático.


Nenhum comentário:

Postar um comentário