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terça-feira, 9 de abril de 2013

O Sorriso Amarelo

Um mineiro de Uberaba, recém-chegado à minha cidade natal, falou tanto sobre a nova capital, que meu pai se decidiu e acertou que nos levaria para ver de perto tanta maravilha.
Nossa primeira longa viagem, envolvendo toda família, aconteceu em julho de 1963. Viajamos para conhecer Brasília, na kombi azul e branca, zerada, que meu pai tinha adquirido bem recentemente. Não conhecia aquele pai brincalhão, conversador, que deixava transparecer que se divertia a valer com a viagem e a companhia. Ficamos hospedados no hotel Paranoá, no centro de Taguatinga, ao lado da igreja do Perpétuo Socorro. Foram três dias de sonho. Depois de rodar pelos principais pontos turísticos de Brasília, seguimos rumo a Belo Horizonte, onde passamos dois dias, com direito a parque de diversões muito iluminado e emoções inesperadas como a mulher que virava gorila e ameaçava soltar-se das grades onde estava aprisionada. Dali, seguimos viagem até Aparecida do Norte, onde meus pais pagaram promessa para nossa santinha protetora.


De volta a Ipuã, nossa cidade no interior de São Paulo, meu pai retornou ao mesmo padrão de homem trabalhador, sério, de poucas palavras, temente a Deus, exemplo de arrimo de família.

Quando ouvi que nos mudaríamos, definitivamente, para Taguatinga, fiquei apreensiva; sabia que perderia meu pedaço de céu. A ideia era buscar um local onde os filhos teriam mais ofertas de estudo, com um futuro melhor, já que meus pais sabiam que a educação move montanhas. Com mais tempo para pensar, depois de ouvir e ver o entusiasmo deles, exultei, pois queria de volta aquele pai da viagem.

O pai que, no último dia vinte de março acabou de completar oitenta e seis anos, passou por tantos percalços, teve tantos desenganos... Se não fossem as histórias que ouvimos, quase sempre as mesmas, nos nossos almoços de domingo, diria que ele foi abduzido e, no seu lugar, deixaram uma figura tensa, ectoplasmática; sombra da minha mãe.

Sem querer dar a entender que ele não tem vontade própria, mas já dando, percebo que ele se tornou uma pessoa tão cordata, virou um ser tão avesso a desavenças, uma figura de convivência tão sem desafios, que olho e olho e não vejo aquele pai que nos acompanhou e guiou na viagem e na mudança...

Pois não é que no domingo passado, na hora do almoço, ele veio com uma conversa que deixou todo mundo de boca aberta?

Pois é! No domingo, durante o almoço, meu pai confessou que passou a vida inteira tentando manter a calma, evitando confrontos, entendendo o lado do outro. E acrescentou que, com isso, imitava o próprio pai. Riu amarelo e soltou um “não passei nem perto!”.

Quando meu pai nasceu, no interior do estado de São Paulo, na cidade de Ipuã, em condição de muita pobreza, ele herdou a história de uma tragédia que fez da mãe dele uma mulher muito triste: o primeiro filho tinha morrido afogado.

A tragédia aconteceu no início de 1923. A vida estava muito difícil e foi aí que meus avós arrumaram emprego numa fazenda, no interior do mesmo estado, na cidade de Assis, longe da cidade onde nasceram, onde casaram e onde tiveram o primeiro filho. Na tal fazenda, minha avó tinha levantado cedo para lavar roupas e deixou o menino de recém-feitos três aninhos brincando por perto. Por um desses tais azares do destino, enquanto estendia uma baciada de roupa já limpa, esqueceu-se que o diabo atenta e que menino é bicho muito malino e o pior do pior aconteceu... Ele morreu afogado, dentro da tina que ficava embaixo da bica d’água.

Meus avós pegaram seus trecos, puseram na carroça e voltaram para Ipuã, desacorçoados. O tempo se encarregou de mostrar a força do seu curso, a vida de durezas deu uma trégua, meu avô arrumou emprego na cidade e nasceram dois filhos: o Antônio, em 1924, e meu pai, o Ézio, em 26.

Os dois meninos cresceram numa situação de muita carência. Porque era um tempo assim, para a maioria da população. Faltava emprego, faltava escola, vivia-se em regime de quase escambo. Para piorar, a minha avó virou uma pessoa triste, doente, um poço de dores. Em conseqüência de tudo que passava, sofria dos nervos. Eram comuns cenas contra meu avô. Num dia caótico, quando o coitado chegou tarde do serviço e ainda teria de fazer o jantar para os quatro, ela jogou um prato de louça nele e, por pouco, não o deixou de cabeça partida. Os meninos a tudo assistiram, quietinhos. Eles respeitavam o jeito da mãe, mãe doente, muitas vezes de cama, à mercê da caridade alheia e da madorna que servia de couraça para que meu avô levasse adiante os percalços que a vida lhe infringia, com paciência. Os meninos observavam o silêncio e a tolerância do pai.

Quando meus pais resolveram mudar para a nova capital, em 1964, a notícia mexeu muito com a família, e deixou à mostra as cicatrizes da tragédia dos meus avós. Os parentes sofreram com a nossa ausência, temendo o pior, torcendo pela nossa volta, sãos e salvos. Do nosso lado, sofremos com a adaptação e dificuldades de moradia, na cidade de Taguatinga, Distrito Federal. Faltava água, sobrava solidão e saudade...

Na cidade onde nascemos, no interior de São Paulo, ficaram pedacinhos das nossas histórias de tristezas e de alegrias, esparramados por todos os lados. A casa da minha madrinha Landa fica na rua transversal, a uns cento e cinquenta metros da casa onde morreu a mãe do meu pai, no mesmo quarteirão onde ficava a casa dos meus pais. Muitas histórias que sei do meu pai, antes dele se casar com minha mãe, são contadas pela minha madrinha, amiga de infância dele que também gosta de contar casos. Sim, ele também os conta; só que se resguarda e mantém intato o próprio coração. Minha madrinha se lembra que minha avó passou um ano de cama, esvaindo-se por causa da doença ruim que a fazia gritar de dor, na madrugada. Era um tempo sem cuidados e sem remédios. Sem saúde, restava esperar a morte e sofrer, enquanto a maldita não dava as caras. Minha madrinha era mocinha e acordava, de madrugada, ouvindo a lamentação da doente. Ninguém tinha nada a fazer, a não ser sentir muita pena. Principalmente no final, quando a doente não teve a menor trégua das dores...

Quando a madrinha me contou essa história dessa avó que se deitou no dia de Finados de um ano e faleceu no dia de Todos os Santos do outro ano, lembro-me de ter ficado muito abalada.

No domingo, depois da tirada do meu pai, querendo transparecer que queria ter sido ainda mais tolerante do que sempre foi, percebi que ele estava num momento de contrição. Comecei então a fazer perguntas sobre aquele tempo diferente e sombrio, quando ele era rapaz e a esperança tinha de ser agarrada à unha.

- Teve um dia que a minha mãe estava sofrendo muito. A gente ainda não sabia que era doença ruim. E pediu que eu vendesse seis ovos que ela tinha colhido de um ninho no quintal, onde meia dúzia de galinhas ciscava. Os ovos estavam dentro de um saquinho de papel, daqueles que embrulhavam o pão que se comprava na padaria do Juca. Com o dinheiro, eu deveria comprar cibalena (aqui, ele fez uma pausa para dizer que o analgésico era o único remédio que todos tomavam, não importava o mal que os acometia)... E continuou:

- Eu ia pela calçada, rapazote ainda, assoviando e, ao passar por um poste, o saquinho bateu no poste e os ovos se quebraram. Não todos. O saquinho de papel ficou molhado, rasgou e caiu tudo no chão. Aí, sim, não sobrou nem um inteiro!

Meu pai deu então um sorriso amarelo e continuou:

- Sempre que penso nessa história, tenho a sensação que acabou de acontecer! Voltei para casa, muito chateado comigo mesmo e com a minha burrice. Entrei, encarei minha mãe e contei o acontecido. Ela deu um sorriso triste, disse que não tinha nada não, que eu deixasse para lá... Mas eu preferia mesmo era que ela tivesse brigado comigo e me batido!

Minha avó morreu no dia de Todos os Santos, no ano de 1947. Em maio de 48, meu tio Antônio se casou com a tia Lourdes e ficaram morando na casa do meu avô. No mesmo ano, em vinte e oito de julho, meus pais se casaram.

Taguatinga, 28 de março de 2012

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